domingo, 27 de dezembro de 2009

Os grandes mistérios do mundo

Quanto menos inteligente um homem é, menos misteriosa lhe parece a existência.

– Arthur Schopenhauer

Quando criança eu queria a solução dos mistérios do mundo. Também achava difícil uma explicação de base material para tudo o que existe. Duvidava, mas não com estas palavras, duvidava com palavras de criança. Apelava sempre para uma retorsão que ia até o infinito e terminava por dar um nó em minha cabeça. Deus fez o mundo, fez tudo, mas de onde Ele vinha? Perguntava.

Cresci e como diria Pessoa, estudei, amei e até cri, ainda assim não me satisfazia com o que se apresentava a mim. Estudei filosofia, busquei os mecanismos do mundo e aprendi que existem mistérios que não são tocados pela limitação humana.

Hoje em dia, ainda sem nenhuma certeza de minha existência material, gosto de pensar no mundo como um livro em que Deus escreve continuamente, enxertando ou excluindo personagens da história do infinito. Deus estabelece a trama, cria as reviravoltas da estrutura, vai moldando o caminho das personagens. Fico imaginando que tipo de história faria se esse enredo parasse em minhas mãos só um instantezinho que fosse. O que seria? Um drama? Humor? Ficção científica? Policial? Talvez eu fizesse um poema mesmo, se eu soubesse ser poeta.

Às vezes me angustia pensar que o mistério da vida possa ser apenas o mistério da vida. Eu queria que fosse diferente. A minha vizinha, por exemplo, sempre relaciona o surgimento de um fenômeno natural aos seus joanetes doloridos ou então justifica a ruína financeira de alguém por meio de uma série de eventos comuns como o mau olhado – nada que um galhinho de arruda não dê jeito, ela diz. Para ela o mistério do mundo não existe, pois as causas do mundo estão no próprio mundo, para que todos possam ver. Se ela não consegue responder algo, diz que foi a vontade de Deus e pronto, tudo resolvido. Minha vizinha não sabe quem foi Platão. Nunca deve ter lido Kant. Não sabe para que servem as leis de Newton. Exegese bíblica para ela deve ser palavrão e com certeza não sabe que graças a Einstein o universo não é mais plano como cria Euclides. Nossa, tem gente que realmente sabe o que é viver.

domingo, 20 de dezembro de 2009

O dia que a floricultura fechou





Trazia minha mãe de uma consulta médica, onde a havia levado a fim de que tratasse de alguns reumatismos que os anos lhe deram, quando enfim percebi que a floricultura fechara as portas. Podia tê-las fechado há meses, mas me dei conta somente naquele momento. Como estou acostumado a me locomover para os lugares de ônibus, sendo sempre o passageiro e não o condutor, aprendi a ver o mundo assim, de passagem – o que quem sabe poderia justificar a minha relutância em dirigir. Foi numa das várias olhadas que dou pela janela, entre um dos pontos em que o ônibus se permite parar, seja para a subida ou descida de passageiros, que tomei conhecimento de mais aquela falência. Entristeci.

Sei que uma floricultura é apenas mais um negócio guiado pelos ditames do capitalismo. Porém, se me perguntassem sobre o que preferia ver fechado, uma floricultura ou um banco, mil vezes diria o banco. Um banco trabalha com variáveis, com taxas de câmbio, estatísticas, com números. Enfim, com o que é relativo ao dinheiro. E as pessoas que trabalham no banco ou dele são clientes, estão sempre de um dos lados do balcão de atendimento, guarnecidos de quaisquer emoções. Uma floricultura não, ela é diferente, mesmo que esta seja voltada para o lucro, ainda assim existe nela um exercício de paciência, onde está envolvida a dedicação e até mesmo o amor dos seus envolvidos. Uma floricultura trabalha com o belo, com os sentidos, com a alma. E no fim das contas, o bem que se almeja não é o do comerciante nem do comprador, mas daquilo que é vendido, as flores.

Em nossos dias conferem-se nos dedos as artes preocupadas em realizar o melhor que elas possuem em si mesmas. Boa parte delas, senão sua quase totalidade, vem se preocupando com o que é mais eficaz, mais lucrativo. Se não é capaz de atingir o esperado, fecha as portas como a pobre floricultura. O que me faz pensar se nossas paixões não andam sendo pautadas por esse sentimento de poder e conquista que não permite um olhar desinteressado em proveito daquilo de mais importante que tem o humano: a sua humanidade. Escrevo entristecido ao constatar essa amarga verdade e ao fazê-lo contemplo um belo vaso de flores de plástico. As flores de plástico não morrem, este é o problema delas.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Quase crônica

Ainda me fascino ao ver o velho escritor trabalhando. Hoje acordou querendo escrever poesia. É uma pena, pois está lhe faltando um coração para ser um poeta. Como não pode fazer verso, tenta ir de prosa mesmo. Começa. As mãos permanecem quietas. Sabe que escrever requer vontade, esta não lhe falta, só que é preciso mais que isso. Falta um elemento que a transforme, que tome emprestado aquilo que está em seu peito cansado e o traduza em palavra. Inspiração.

O pensamento solto. A ponta da caneta mastigada. A página em branco. A fome da palavra. Vai escrevendo e o que vai saindo no papel não chega a ser a crônica, mas sim a vontade dela de se insinuar no mundo, de tornar solene o fruto do matutar de uma cabeça qualquer. Somente palavra escrita.

Cai a noite. Nada. Olha pela janela: a rua onde tudo isto se dá ainda é a mesma, enquanto o mundo todo que está em sua cabeça tenta se transformar em sua imagem e semelhança. Mas ainda não consegue escrever. Passa o tempo. Passam as pessoas. Passa um cachorro que persegue um pobre gato. As estrelas brincam de brilhar no céu e algumas crianças – indiferentes às revoluções do Universo e de sua cabeça – pulam amarelinha. Larga a caneta. Diante de tudo isso, pelo menos por hoje, o mundo não vai precisar de sua contribuição.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Notícia de jornal


A cena foi rápida, portanto é forçoso que se excluam deste relato os seus mínimos detalhes. Um garoto entra em uma rua, montado em uma bicicleta. Dos cós de sua calça tira uma arma e, ainda em movimento, atira duas vezes. No outro extremo de sua ação, o objeto de sua fúria é outro jovem – um desafeto seu, pelo menos é o que se pensa. Neste momento em que são antagonistas de mais um fato do mundo, a única coisa que podem ter em comum é a sua juventude, ambos não devem ter mais que vinte anos. Quem se vê diante da morte, instintivamente não vê outra saída senão fugir e não se pode dizer que o segundo rapaz não tenha tentado, mas os dois tiros que o rapaz da bicicleta deu, atingiram-lhe no abdome e na coxa. Mesmo assim, e desesperadamente, ele corre, quem sabe em reminiscência de carreira dada na infância. É em vão. Cambaleia e cai em frente ao portão de uma vila próxima que, aliás, está fechado. Permanece ali, impotente, incapaz de defender a si mesmo. Em quais atividades poderia estar seu pensamento concentrado? No resto de dor que deveria estar sentindo antes que se desligassem seus sentidos? Na desagradável surpresa do momento? Na débil chance de sobreviver à tragédia pessoal? No medo de quem simplesmente sabe que vai morrer? O rapaz da bicicleta se aproximou, viu o outro agonizando, se contorcendo em dor. Efetuou mais quatro disparos, todos na cabeça. Deus fez o homem no sexto dia e não há quem, em seu íntimo, não se espante ao ver tanta indiferença com o labor divino. O rapaz que se transformou em assassino olhou ao redor, viu que ninguém esboçou reação. Naturalmente é difícil encontrar quem se indisponha com alguém que notoriamente tenha assassinado uma pessoa e se este que tem as mãos manchadas de sangue ainda tiver nelas a arma do assassínio, é até prudente que não lhe sejam negados certos caprichos como o de deixar o local do crime. E assim, livre de impedimentos, o rapaz da bicicleta só poderia ter fugido. Eram nove horas da noite de uma segunda-feira.

Quando a mãe arranca de suas próprias carnes uma criança, se supõe que ela – a mãe – queira daquela que adentra no mundo, por seu intermédio, o melhor, haja vista a relação de intimidade que possuem: um fruto das entranhas da outra. Existem casos em que essa relação não é possível, pois é inegável que existem fêmeas que não nasceram para a maternidade. Felizmente esses casos são tratados genericamente como desvios da regra. A maior parte das fêmeas abraça seus filhotes e suas causas ou assim imagina proceder. O rapaz que há pouco fora assassinado, decorridos então cerca de vinte minutos entre o ocorrido e a chegada de sua mãe, provava assim estar inserido na regra. Dizem ser indizível a dor de uma mãe ferida na própria carne. Aqueles que crêem na Bíblia Sagrada, por exemplo, podem afirmá-lo no sofrimento, muito bem descrito nos quatro evangelhos, de santa virgem Maria ao ter nas mãos os despojos de seu filho. Aliás, o próprio Jesus Cristo, que nada consta ter acalentado nos braços um filho, devia ter a dimensão da importância de um. Se assim não fosse, não se teria dado ao trabalho de restituir o filho único de uma viúva, como se pode constatar em são Lucas, capítulo sete; versículo onze. De ascendência menos nobre, mas tornada irmã da santa ao ser destituída de seu filho, a mãe sofre na santidade de seu sofrimento. Não imaginando que aquela criança, cuja boca faminta apertara com força contra o seio e que em noites turbulentas de fome e febre pusera para dormir no mais nobre dos berços que pudera dar, havia recostado para descansar a cabeça, pela derradeira vez, no chão imundo de uma calçada; berço indigno para qualquer um da humana raça, desesperou-se em um desespero de muda palavra e o que apenas se ouve é um ganido, linguagem bruta da alma, ainda sem tradução. Descontrolada diante do cadáver é arrastada para longe de seu filho, enquanto a multidão – que já estava formada há algum tempo – reocupa o pequeno lugar que se lhe havia tirado.

Vinte minutos após a retirada dramática da mãe chega uma ambulância – que dadas as circunstâncias não possui a menor utilidade – e uma equipe de televisão. Depois chega um carro da polícia técnica e por fim duas viaturas; a primeira é ocupada pelo delegado de plantão que, assim como o repórter que tumultua a cena do crime com as suas perguntas tendenciosas, investiga e indaga alguns moradores.Já na segunda viatura, para a surpresa dos que não crêem na eficácia da polícia, estava o jovem que assassinou o outro, com o rosto encostado à janela da porta traseira da viatura. Não se sabe ao certo as circunstâncias de sua prisão, mas se sabe que não se afastou muito do local do crime. Foi pego já sem a bicicleta e arma com que cometeu o homicídio. A se ver em desvantagem numérica e bélica, apenas rendeu-se sem oferecer resistência maior do que aquela de quem se vê repentinamente privado de liberdade. Pode-se ver, por trás das luzes das sirenes e câmeras de tevê, seu olhar fitando o vazio; o seu rosto se contorcendo de tempos em tempos ao divisar o local onde, por trás das pessoas, deve estar o corpo do jovem que matou. Não há remorso em seu semblante, mas se percebe nele a absoluta falta de esperança em relação a algum futuro. Olhando-o mais de perto, sem a profusão de luzes, nota-se seu rosto liso e sua expressão de criança assustada que não sabe direito o que fez. Quarenta e cinco minutos depois, o corpo do rapaz é retirado do relento pelo rabecão, após três horas decorridas do assassinato. Em seguida sai a ambulância que não chegou a ser usada. Depois sai o carro da perícia técnica, acompanhado de perto pelas duas viaturas que transportam o delegado e o prisioneiro. Também se retira a multidão que, afinal de contas, não tem mais nada para ver. No local onde permaneceu o corpo do rapaz havia apenas uma grande mancha de sangue que, com empenho dos vizinhos munidos de esfregões e baldes d’água, não demorou vinte minutos para ser retirada. Era uma da manhã quando o último vizinho, que foi à rua para fumar seu cigarro, entrou em casa para dormir.

No dia seguinte o rapaz que foi assassinado e o rapaz que o assassinou ainda são novidade. Um dos vizinhos comenta que o apelido do falecido era Terry, por causa de um jogo de vídeo-game. Pelo que se falou dele, não era flor que se cheirasse. Disseram que era ladrão e ainda por cima já matara outros três. Portanto, ainda segundo o sábio vizinho, teve o fim que mereceu. Se era assassino ou não, não fazia a menor diferença, se não havia encontrado no dia de sua morte mão caridosa que lhe oferecesse um toco de vela, também não encontraria boca que o defendesse de prováveis calúnias. Quanto ao outro o rapaz, cujas circunstâncias denominavam assassino, não se mencionou seu nome, mas alguém disse que sua índole era boa e que não imaginavam os motivos para que cometesse tamanha loucura. Na calçada onde ficara o corpo do assassinado, miraculosamente equilibrados uns sobre os outros, seis sacos de lixo disputavam um apertado espaço.

domingo, 29 de novembro de 2009

Conversa de criança


Domingo. Estou na janela de minha casa, nada para fazer. Mas na casa em frente, na calçada, três meninos conversam trivialidades entre si – como só os meninos sabem fazer.

“Aquele cachorro é muito inteligente”, diz um deles, apontando para o animal que se coça ao longe, “ele leva o jornal para o seu dono.”

De repente me flagro atento à conversa e imagino a cena de filme americano: um animal que zelosamente mantém seu dono informado com as notícias do dia, enquanto lhe lambe as faces em subserviência e felicidade.

A infância também tem das suas disputas, uma delas é não ficar para trás em alguma conversa e o outro garoto, a despeito do que disse o primeiro, revela a proeza de seu bicho:

“O meu gato também é muito inteligente, pois ontem, sabendo que era dia de vacinação, não desceu do telhado.”

Continuo achando graça. O segundo menino mostra acontecimentos que vejo com mais freqüência.

Já o terceiro, que até então estava incógnito em meio à conversa dos outros dois, pode até não ser o que mais esteja à vontade com os acordos de verdade do mundo, mas com certeza é o mais criativo dos três.“Pois o gato lá de casa é mais inteligente ainda, imaginem vocês que ele saiu de casa, foi vacinar e voltou para casa sozinho.”

Os outros dois riem, não sei se em concordância ou negação daquilo que foi dito. As horas passam, vem a noite, se sobrepondo à tarde e mais uma vez a inocência da infância suplanta a dura realidade de uma véspera de segunda-feira.

domingo, 22 de novembro de 2009

(I)números que não se contam mais


Ela repuxa o vestido como se este fosse uma manta. Ao fazê-lo resmunga. O pedaço de pano sujo que lhe cobre o corpo é incapaz de cumprir tão ingrata e improvisada tarefa. A boca que se murcha, não se sabe se em sonho ou pesadelo, gagueja pragas perdidas na noite. Se se encolhe e não lhe basta o vestido para cobrir a dignidade é porque tem frio e se lhe faltam forças para esfregar os braços como dissesse ao frio, estou aqui e basto para mim mesma, é porque é velha e já não lhe valem sequer as idéias da distante juventude. E se ainda assim não lhe bastaram as tragédias de sua própria vida, as ruas, que para ela são o correspondente a um lar, lhe mostraram umas tantas outras.

Da janela de um ônibus qualquer se vê claramente, a velha é uma criatura entre tantas outras mil criaturas; tantas outras mil agonias de um sábado à noite. Dia seguinte: almoços de domingo, filmes no cinema, passeio no parque, volta para casa. Que parte da vida comum, da coisa comum, de um domingo comum lhe foi negada?

Aqueles que são os grandes homens do mundo. Aqueles que são grandes e que ainda assim não enxergam a pequenez dos que já são pequenos, se pudessem vir e olhar o sofrimento dos que do dia só comem a poeira do mundo, saberiam como ele é maior que o ego.

Enquanto as dores do mundo rasgam os que estão com o rosto colado às janelas do ônibus qualquer, a velha se revira no mundo (acordando?), as entranhas se mexendo em espasmo. Olha para alguém (do ônibus?). Parece que olha, mas não olha, o juízo lhe eclipsou os olhos. O ônibus corre macio, entrando mais e mais dentro da garganta da noite. Uma voz diz, ide e anunciai, outra responde, o que olhos não vêem (ou fingem não ver) o coração não sente. O ônibus se afasta mais. A velha vai sumindo quadro a quadro, cinematográfica. Volta a dormir.

sábado, 14 de novembro de 2009

O caranguejo


Meu primeiro contato com a maldade humana foi aos cinco anos, ainda que esta tenha sido sentida em seu estágio mais primário, momento em que chamam esse ensaio da pobreza moral simplesmente por traquinagem. O evento, mesmo na tenra idade em que me encontrava, foi, na minha vida adulta, a pedra de toque para minhas relações tão arredias com os outros homens.

Costumava passar os fins-de-semana na casa de minha avó. A casa era em um desses bairros, que antes de serem destruídos pela especulação imobiliária, agregavam uma classe média refinada – a fina flor de minha cidade. Lá se podia brincar livremente com os outros meninos, oportunidade que eu não desfrutava em minha casa, que ficava em um bairro mais afastado e intranqüilo. Naquele ambiente de condomínio fechado estávamos entregues ao tempo e a nós mesmos, então gastávamos a nossa tarde em atividades cuja finalidade não era específica, fosse priorizando a brincadeira, inserindo nas conversas os palavrões que não se falava em casa ou então refestelando-nos na vadiagem incriticável das tardes mornas.

Foi em um desses dias de minha desaparecida infância que, a fim de explorar as redondezas, desgarrei-me do grupo e me declarei rei de um pequeno quinhão. Investido de repentina autoridade, corri por entre as árvores; espantei borboletas; lutei espadas com o vento e rolei na grama em um riso alto e bobo de criança. Uma vez satisfeito de meus desejos individualistas, começava a retornar ao grupinho quando vi, deslocado do cenário e enfiado em um tronco, um bicho que até então não havia visto em minha curta vida. Horas mais tarde, com a cabeça no colo de minha mãe, saberia, de fato, que era um caranguejo. Ainda hoje os acho curiosos, osso por fora, a carne por dentro. A arquitetura ousada, hábil na lama, um despropósito no jardim em que estávamos naquele dia. Uma dessas belezas rústicas em que Deus, numa sutileza, faz questão de não fazer arte-final. Impressionante como podia surgir vida pulsante no lodo e não estava lá na bíblia que Ele, se quisesse, poderia fazer surgir das pedras filhos de Abraão? Como poderia ter parado ali? A maré era longe, provavelmente, assim como eu, desgarrara-se de sua cambada, dando prejuízo à outra criatura que do lodo também tirava seu sustento. Fiquei olhando, olhando, o corpo não emanava vida, senão dos estranhos olhos que se moviam curiosos (me olhando?) para todos os lados. Aproximei-me temeroso, não sabia se ele corria, voava – em minha cabeça ele podia fazer qualquer coisa. Em resposta o bicho levantou em ameaça a garra, a maior, a que devia usar para se defender de momentos como o que estávamos vivendo. Estanquei, mas não era medo, era uma admiração, achei-o lindo dentro dos limites de sua identidade. Deus é muito grande para existir por si só. Ele tem que se dividir para estar em todos os lugares, exposto e escondido nos pequenos fenômenos em que faz o homem, criatura em meio a outras criaturas, descobrir a si mesmo no silêncio da contemplação solitária. Queria mostrar ao demais, não ter só para mim os frutos de uma natureza tão generosa. Fui chamar os outros meninos. Não sabia do que chamar o meu achado, podia chamá-lo do que quisesse, a mim havia sido segredada a sua existência.

Quando chegamos, ele estava no mesmo lugar, inamovível. Os garotos olharam. Um deles riu e disse decepcionado: “Mas é só um caranguejo”. Achei o nome feio, eu poderia ter dado um melhor. De repente, sem que pudesse entender algo, vi uma pedra voando e a garra do caranguejo, a maior, desprender-se, caindo sem vida no chão. Voaram outras, na verdade uma chuva delas e de um momento a outro não havia mais caranguejo, só uma massa de carne indefinida. Os meninos riam, gritavam. A maldade neles surge assim, uma reação em cadeia impensada, onde o evento que sucede o outro não é resposta, mas estímulo de seu antecessor. Alegremente foram saindo, eu destruído por dentro, sem ter podido protestar ou entender os motivos do que fizeram – uma maldade! Anos mais tarde – quando os meninos já eram homens – eles não se lembrariam do ocorrido, mesmo que eu lhes tentasse reavivar a memória acerca do pequeno crime. Horrorizado, permaneci quieto, sem entender meu erro. Os meninos foram brincar – ainda havia muito para brincar.

Voltei à casa de minha avó chorando. Minha mãe, ao ver meu sofrimento, me afagou e contei-lhe o ocorrido. Consolado por minha genitora, adormeci e ainda triste sonhei sonhos sem caranguejos. Não voltei ao bairro durante muito tempo. Naquele dia aprendi duas coisas: que existem segredos que nasceram para ser segredos e que a dor – esta linguagem universal, capaz de unir homens e bichos – não se expressa aos gritos, como defendem os vegetarianos para justificar seu apetite por folhas, mas na linguagem do olhar, capaz de perceber aquilo que sofre. Os anos se passaram e eu cresci.

domingo, 1 de novembro de 2009

Do irrepetível


Minha mulher estava sugerindo alguns temas de crônicas quando surgiu a palavra irrepetível. Palavra forte e de teor muito definitivo. Mas ela soava estranha em meus ouvidos, tinha algo que me fazia duvidar de sua aplicabilidade no mundo morfossintático. Como não possuo dotes de filólogo, essa ciência de suma importância e pouco reconhecimento, pedi o auxílio do guia de ignorantes como eu, fui consultar o dicionário.

Usei o Silveira Bueno, antes tivesse usado o Aurélio, pois acabei não achando a tal palavra. Então vai aí uma definição intuitiva, de palavra cuja existência é duvidosa, de quem não é autoridade em coisa alguma. Irrepetível. Diz-se de algo que não se repete; único; diz-se daquilo que só acontece uma vez. Por meio de uma noção, ainda que superficial, pode-se vislumbrar o poder do que é irrepetível e da força que exerce na existência.

Dizem por aí que a vida é curta. É verdade, ela é curta mesmo e até onde se sabe – a despeito de Budismo, Espiritismo, Orfismo e demais doutrinas que falem em encarnação – é praticável não mais que uma única vez. Portanto, irrepetível. Como esta – a vida – é feita de momentos e momentos, existem aqueles que nós gostaríamos que se repetissem: o primeiro beijo de amor, o nascimento do filho, um dia especial. Naturalmente também existem os momentos em que damos graças aos céus por não acontecerem outra vez: a desilusão, uma frustração, a nota baixa que reprovou. Em nossa vida o irrepetível representa (supremo clichê) duas faces da mesma moeda; o que se quer ou não; o que se quer lembrar e o que se quer esquecer.

No soberbo a Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera, a vida é comparada a uma peça de teatro que não se ensaiou previamente o texto. Vista deste modo a situação, os erros são inevitáveis, impossíveis de correção e por muitas vezes desastrosos. É um teatro em que as personagens que saem de cena não voltam mais. As pessoas que admiramos, que queremos bem, que amamos, a existência permite a todas elas – a você que lê a crônica e a mim que a escreveu – apenas um momento. Somos todos assim, provisórios, irrepetíveis e por mais que sejamos importantes, inteligentes, bonitos, um dia – cedo ou tarde, suave ou abruptamente – seremos arrancados de cena para permanecer no que está implícito naquilo que não se repete: o saudoso. Kierkegaard é que tinha razão: o instante é tudo. Diante de tudo isto, resta aconselhar o que é óbvio: viva intensamente cada momento como se fosse o ultimo, porque ele é mesmo. Depois da angústia de parir este texto, resta-me um consolo: esta angústia – especificamente esta – não se repetirá. A filologia devia ter ganhado um Nobel há muito tempo.

domingo, 25 de outubro de 2009

Cavalo de Fogo, o bem e o mal


Os anos oitenta produziram coisas muito legais que infelizmente não mais existem. Muitos de vocês não desejaram uma Caloi; brincaram com um pirocoptero; se divertiram horas em frente a um Atari ou então perderam as tardes de domingo assistido ao MacGyver, estrelado pelo grande Richard Dean Anderson. O tempo passa, o tempo voa e a poupança Bamerindus já nem existe mais – aliás, sequer o banco Bamerindus.

Toquei neste assunto porque me lembrei de um desenho animado daquele período chamado Cavalo de Fogo. A trama era batida, falava de uma princesa exilada que anos depois voltava para reclamar o próprio reino. Tratava-se do velho clichê maniqueísta, onde bem e mal, muito bem delimitados, eram os grandes antagonistas. Vale lembrar que estávamos nos anos oitenta, o mundo tinha lados opostos e como nos versos de uma canção da época, havia duas Alemanhas, duas Coréias, todos se dividiam, todos se separavam. Era este o universo da Guerra Fria, onde, dependendo da ótica, ora se era o bem, ora se era o mal. Naturalmente tudo no mundo rezava aquela cartilha, inclusive os desenhos animados. Aí você passava os episódios todos torcendo para que a princesinha vencesse o mal e ao final de tudo, era o que de fato acontecia. Simples assim. Cavalo de Fogo, eis um bom desenho.

Bem e mal, na cabeça de cada um, parece sempre ter tido a nítida diferença entre ambos, o conhecimento necessário para que não se confundisse nunca um com o outro. Certo? Errado. Bem e mal, que são como água e óleo, ainda são capazes de confundir. Exemplos dessa ambigüidade abundam na história: Hitler, Mao Tsé Tung, Stalin, Osama Bin Laden, a corrupção, a passividade, a oportunidade, a esperteza, a lei de Gérson (esta não foi inventada na década de oitenta, mas cabe em qualquer época), o Onze de Setembro (pode ser o dos Estados Unidos ou o do Chile), o crime, a justiça com as próprias mãos.

Em algum momento da história do mundo, os eventos e as personagens que citei foram de um pólo a outra nesta saga de opostos. O extermínio sistemático de judeus ou de qualquer outro povo já foi um dia justificado. Muitos de nós, ao presenciar a horrível morte do garoto João Hélio, desejamos fim semelhante a seus algozes – como se Justiça consistisse em lei de Talião em um estado democrático de direito. Ou quando alguém tira proveito de determinada vantagem, o que muitas vezes pode consistir em desonestidade, ato ilegal. E podem-se citar outros eventos onde não se pode definir ao certo o que é bem ou mal.

Por vezes já me peguei em dúvidas sobre o que era certo ou errado e ainda não sei o que quero, mas sei o que não quero para o mundo em que vivo. Não quero uma justiça que, incapaz de evitar o crime, mate o criminoso, mas também não aceito as condições sócio-econômicas como justificativa para que alguém se torne criminoso. Não desejo enganar ninguém, no entanto não espero que minha honestidade sirva de mote para que me ludibriem. Não espero que as pessoas reivindiquem violentamente os seus direitos, mas sei que as autoridades não podem se calar diante do pacifismo. Não quero que o governo se esqueça dos oprimidos, mas também não espero que os oprimidos esqueçam que existe algo chamado propriedade privada. Não quero abusar da paciência de ninguém, mas não quero ser esquecido nos labirintos da burocracia.

Bem e mal são opostos, isto é claro e evidente. Só que não é lícito que se manipule os fatos, transformando o mal de uns em bem para outros. É importante lembrar que a Justiça não é cega para se omitir diante das torpezas, mas sim para não nos diferenciar uns dos outros. A dessemelhança entre bem e mal é saber se aquilo a que se chama benefício agrada a todos e não apenas uma parcela. Portanto, se a felicidade se torna prejudicial para alguém, tem algo de errado nisso. Nos anos oitenta eu enxergava isto bem melhor. Ah, que saudades do Cavalo de Fogo!

domingo, 18 de outubro de 2009

Melancolia


Têm dias que a gente acorda, não sabe por que, melancólico. Natural. Como não sou melhor que o resto do mundo, acontece comigo com bastante freqüência. É aquela ponta inominável de tristeza capaz de descolorir o azul de qualquer dia bonito; tornando opaca a transparência; o passageiro em perpétuo; estas naquelas. Que não me venham nestas horas com a conversa hipócrita de que existem pessoas que sofrem por motivos bem mais cabíveis que os meus. Besteira. Que não me venham com isso. Lamento muito por quem é meu irmão no sofrimento, mas minha dor também é genuína.

Pois acordei assim: melancólico. Gostaria muito que quando estivesse desse jeito, pudesse ficar quieto na minha, apenas cuidando de meus filhos e afazeres. Só que o mundo não pára esperando que você tome fôlego. É necessário fazer como todos: viver a vida. Mesmo que isso signifique morder a fatia amarga daquilo que não se deseja. Infelizmente nesse dia tive de sair de casa com ela – a melancolia – pegada às costas.

A minha rotina inclui pegar um ônibus, mas se você está chateado por algum motivo – como eu estava – e tem de pegá-lo lotado, com gente que ainda por cima acha possuir o direito de não enfrentar fila, uma tarefa dessas, que já não é fácil, torna-se ainda mais árdua. Com muito custo subi no coletivo e – para completar o meu dia ruim – fiquei em pé, remoendo os pensamentos daquela manhã. Por acaso ou divina providência, apareceu um assento vago e como ninguém se manifestava ocupá-lo, o ocupei. Uma vez sentado, continuei em minha melancolia. Foi quando vi uma senhora, já curvada pelo vagar dos anos, rompendo com muito custo a multidão de passageiros. Como já disse antes, estava melancólico, mas não mal-educado. Ofereci-lhe o lugar e ela, após muita resistência, concordou em sentar-se. Ela agradeceu a gentileza, falando o quanto eu era educado, belo e jovem. Tive vontade de dizer a ela que nunca me achara belo e que já não era tão jovem – já estou na casa dos trinta –, mesmo assim aceitei calado o elogio. Também pediu que segurasse minhas coisas e como aquelas eram pesadas, hesitei e por fim acabei dando-lhas. No momento em que as transferia de mim para ela, cruzamos nossos olhares. Como quem diante de um poço sem fim se debruça para ver seu interior, vi os olhos de quem vive e envelhece estoicamente em um mundo de agruras.

A senhora que eu não conhecia e que podia ser muito bem a avó que também não conheci, acabou me ensinando – sem nada querer ensinar – mais que todas as religiões do mundo, me ensinou que o tempo passa pela gente, mas algo de nós permanece imutável, indiferente à corrupção dos anos e que estar só no mundo é uma escolha que embora ruim, pode ser muito bem superada se amarmos para que nos amem. Deu vontade de descer do ônibus e ir para casa, abraçar a família, dizer a eles que, apesar de meu mau-humor, daria o que tenho de melhor; o que me faz ser homem e não coisa. Pela janela, que estava aberta, vi a paisagem. O horizonte passava ora nuvem, ora árvore.

domingo, 11 de outubro de 2009

Fome de pedra


O contato diário que travo com meus vizinhos é capaz de proporcionar momentos, digamos, inesquecíveis, como no dia em que um pássaro, cujo nome me foge à memória, caiu no quintal de minha casa. O bicho em questão, aparentemente, nada havia quebrado, só que não conseguia alçar voo, então eu e meu sobrinho resolvemos tratá-lo. Tenho mesmo essa mania de samaritano com tudo que é bicho, viro até as baratas que encontro de patas para o ar. Mas como eu ia dizendo, se não voava, devia estar ferido, demandando cuidados. Como pouco entendo de pássaros e o adiantado da hora não permitia que o levasse ao veterinário mais próximo, achei melhor pô-lo em uma gaiola que há muito estava encostada lá em casa. Antes que pensem qualquer coisa de mim, a gaiola não me pertencia, mas sim a um ex-cunhado que por lá a havia deixado, sempre achei um absurdo prender em um espaço tão limitado um bicho que tinha os céus como lar. Quando já ia recolhê-lo, meu sobrinho aventou para a possibilidade dele estar com fome. É, devia estar. Pensei que era impossível arrumar algo para que ele comesse àquela hora. Além do quê, pássaros são cheios de peculiaridades, uns comem alpiste, outros comem outras coisas. O melhor mesmo seria levá-lo, no outro dia, a Alessandro, um vizinho meu que desde pequeno criava toda espécie de ave. Fomos dormir.

Na manhã seguinte fui falar com o tal vizinho entendido de pássaros. Foi até fácil achá-lo, estava varrendo a calçada de sua casa.

“Bom dia, Alessandro”, disse-lhe cortesmente.

“Bom dia, Thomaz”, retribuiu meu vizinho.

“Alessandro, estou com um problema lá em casa.”

“Pois diga lá do que se trata.”

“É que ontem caiu um passarinho lá no meu quintal, acho que está ferido e também com fome, mas não sei o que lhe dou de comer. Fiquei com medo de dar qualquer coisa, sabe como são esses bichos com comida.”

“É, sei. Traz o bicho que te digo o que ele come.”

Contente com a sabedoria aviária de meu vizinho, fui buscar a gaiola. O passarinho estava em um canto, mórbido – mais um indício de que deveria estar faminto.

Alessandro olhou rapidamente o animal, disse seu nome e em seguida traçou o seu cardápio.

“Pedra. Ele com pedra.”

Pensei que ele estivesse de brincadeira ou então eu havia ouvido errado.

“Alessandro, acho que não entendi. O que você disse?”

“Eu disse que ele come pedra.”

“Pedra?”, repeti incrédulo. “Como assim come pedra?”

“Pedra. Que nem as que você acha no chão.”

“Você tá de brincadeira, não é? Que Bicho no mundo come pedra?”

“Esse que você tem na mão come.”

“Poxa, Alessandro, o bicho não come desde ontem e você me vem com essa! Eu tenho que dar comida a ele.”

“Vai por mim, rapaz. Dá pedra que ele come.”

“Ah, tá bom, Alessandro”, disse enquanto ia embora. Onde já se tinha visto aquilo? Eu falando que o passarinho estava com fome e ele me mandando dar pedra para ele.

Não sei de onde meu vizinho havia tirado aquilo, mas que o bicho tinha que comer, ah, isso tinha! Mandei que meu sobrinho comprasse alpiste – que até onde eu sabia era de fato comida de pássaro –, mas quem disse que ele queria.

“Tio, o passarinho não tá comendo”, disse meu sobrinho, já sensibilizado com o jejum.

Disse para meu sobrinho continuar insistindo. Depois a gente veria com ia fazer, por enquanto eu tinha que ir trabalhar, já estava me atrasando.

No trabalho não consegui me concentrar em nada, só pensava no pobrezinho que nada conseguia comer. Devia ser o caso de levá-lo ao veterinário. Tinha que ser. Como será que era a consulta de passarinho? Já tinha visto de cão e gato, mas pássaro era novidade. O veterinário fazia o quê, mandava o bicho subir no poleiro e abrir o bico?

Voltei para casa. Meu sobrinho disse que o passarinho continuava sem comer.

Olhei-o através das grades da gaiola, ainda mais triste, muito quieto mesmo. Quando eu era menino, me disseram que aquela quietude em bichos tão agitados como eram os pássaros, era o indicativo de que estavam próximos da morte. A lembrança me encheu de preocupação. E se ele estivesse para morrer mesmo?

“Acho que vamos ter de levá-lo ao veterinário” disse ao meu sobrinho, enquanto sacudia a gaiola à espera de uma reação qualquer.

Ele nem se mexeu.

“Tio, será que ele não come pedra mesmo”, disse meu sobrinho, na mais infantil das esperanças.

“Bobagem, menino. Onde já se viu um absurdo desses”, repreendi, mas já sem tanta certeza assim. Vai que de repente ele comia pedra mesmo?

Resolvi tirá-lo da gaiola. Nem bem puxei a portinhola e o pássaro, num agito só, voou para bem longe de qualquer mão humana. Bom, pensei, se tem forças para voar, deve ter para se alimentar sozinho – até para comer pedra, se for o caso.

Faz uns quatro anos que isso aconteceu e nunca mais caiu pássaro de espécie alguma em minha casa. Dia desses encontrei com o Alessandro na rua, casualmente. Falei-lhe da história do pássaro e de como fugira de minhas mãos. Alessandro limitou-se a ouvir e reafirmar o que dissera quatro anos atrás: aquele pássaro comia pedra. Também me disse que eu havia sumido, que fazia tempo que não falava com os vizinhos.

“Ah, é? Então passa lá em casa qualquer dia desses, para conversarmos melhor. Você aproveita e almoça comigo”, convidei.

“E o que vocês costumam almoçar por lá?”

“Olha, Alessandro, geralmente comemos qualquer coisa, mas como é você que vai comer lá em casa, nós podemos comer tijolo, amigo. Tijolo.”

domingo, 4 de outubro de 2009

Só sente fome quem come


Somos seis bilhões de pessoas que vivem em um mundo apertado, escasseando todo tipo de recurso que ele tem e tudo o mais. Não demorarão quinze anos e seremos sete bilhões. Sete bilhões e fazendo as mesmas coisas que os outros seis bilhões já faziam, só que acrescidos de um bilhão. Nossa natureza é selvagem, devoradora, quase que insaciável em sua essência.

Calculamos, fazemos estatística e aritmética. A fome vai crescendo bilionária, logarítmica, progressiva e vamos calculando a nossa miséria, atrapalhados que nem macacos com o ábaco nas mãos. Viver, neste caso, é experiência única; é sentir na pele a mordida que a consciência dá naqueles que sentem o mundo crescendo invariável ao redor, sufocando, consumindo a certeza de que se é intocável.

Fazemos ginástica, ioga, bebemos cerveja, uns balançam a pança, outros seguram – que a fome aperta –, plantamos mandioca, bananeira, damos até pirueta e olha que não é circo, mas não deixa de ser engraçado e no final quem morre é o público, de sede, fome, frio, cansaço, sem graça. Ai meu Deus, se este mundo – como dizem por aí– é mesmo um circo, eu já até me sinto um palhaço.

Pra se resolver o problema de nossa fome já se tentou de tudo, sobretudo no que se tem em matéria de “ismo”. “Ismo” pra cá, “ismo” pra lá, “ismo” pra todo lado. Cabalismo, zen-budismo, “achismo”, “filosofismo”. Uns, mais comedidos, tentaram o comunismo; os mais afoitos, capitalismo. Deu em “nadismo”. Eu sugiro outro “ismo”: canibalismo. Porque se comer o outro não mata a fome de quem come, pelo menos mata a de quem é comido.

sábado, 26 de setembro de 2009

Óculos


Sou míope. Irremediavelmente míope. Desses que não se separam de seus óculos para nada – às vezes nem na hora do banho. Mesmo que quisesse me separar deles não conseguiria, não enxergo um palmo diante de meus olhos. Confundo cachorro com gente; jarro com gente e certa vez achei que o eletricista, que ajeitava a fiação de um poste, fosse o boneco da malhação de Judas. Meus amigos acham meus óculos feios, grandões e se as meninas do Leblon não olham mais para mim, eu uso óculos. Já me sugeriram o uso de lentes de contato. Sempre digo que não tenho higiene para usá-las. Mentira. O que tenho mesmo é um medo danado de colocar qualquer coisa nos meus olhos. Até mesmo um simples colírio torna-se uma luta cansativa entre minha razão – que diz que devo usar o colírio – e meu corpo – que diz que não devo em hipótese alguma abrir meus olhos.

Ter medo de mexer em meus olhos é só um dos diversos medos que possuo. Aliás, não só eu, mas a humanidade toda. Temer algo pode ser um sinal de prudência ou pode ser um traço da mais absoluta covardia. Medo da morte, de dívida, de assombração. Há medo para tudo: dos mais sérios aos mais absurdos. Enquadro-me no segundo grupo, dos que tem medo de bobagem. Imaginem só, tenho verdadeiro pavor de peixe-boi. Detalhe: nunca vi, pessoalmente, um em toda a minha vida, mas mesmo assim tenho medo – vai entender! Com relação às pessoas do segundo grupo, essas têm motivos de sobra para justificar seus temores. Basta assistir quinze minutos de noticiário para se saber do que estou falando. Gente, é uma notícia mais assustadora que a outra. Alta do Dólar, crise econômica mundial, gripe suína, desemprego, violência, Fluminense na zona do rebaixamento, senado federal, Sarney – este já é até especialista, todo ano arruma um jeito novo de botar medo na gente.

Se remédio de doido é doido e meio, o antídoto para o medo só pode ser a valentia. Para tudo dizem que existe uma resposta. Então você se protege com segurança privada, com grana, com incenso e até com mandinga. Eu rezo para são Miguel Arcanjo e você? Medo é um estado de alerta, de sobreaviso, portanto, antinatural, embora o caos em que vivamos justifique certo tremor de pernas. Um dia hei de ser valente que nem o meu avô. Hoje não, por enquanto vou ficar bem caladinho, escondido, com medo. Onde será que deixei aquela imagem de são Miguel Arcanjo?

domingo, 20 de setembro de 2009

De como aprendi a gostar de ler


Uma nação se constrói com homens e livros. Esta, sem dúvidas, é uma das máximas de que mais gosto. Por ignorância ou desleixo mesmo, nunca me preocupei em investigar a autoria da frase. Mas como uma obra ultrapassa o seu autor e levando em consideração a verdade que a frase encerra em si mesma, isso é o de menos.

Não sou de uma família muito dada a leituras, pelo menos as que eu aprecio. Por um lado minha família é composta por pessoas humildes e até certo ponto pouco letradas. Já a outra parte tem quase que em totalidade uma forte vocação jurídica – o que me faz pensar se “advogado” não é outro sobrenome da família. Portanto, para meus familiares, sempre veio primeiro o trabalho e depois – muito, muito depois mesmo – a poesia.

De cara não fui a ovelha negra, demorou um pouco. Minhas primeiras experiências com a leitura foram traumáticas e desestimulantes – era apenas um monte de letrinhas que dançavam a exmo, sem conexão alguma com minha vida. A escola não ajudou muito, ela apenas empurrava uns paradidáticos e sem nos informar como a adição da leitura como hábito ajudaria em nossa formação como pessoas, transformou o que deveria ser prazer em tarefa chata e obrigatória (como foi a escola como um todo). É engraçado escrever sobre isto e relembrar como a leitura entrou em minha vida, foi logo após repetir o ano na oitava série. É que fiquei com medo de tomar uma sova de meu pai e como única maneira de escapar a ela, resolvi refugiar-me em meu quarto (como se papai não pudesse abrir a porta!). Sem nada o que fazer, acabei – e vejam como o mundo dá voltas – tendo em minhas mãos um dos paradidáticos que tanto desprezava: “Aventura na Ilha”, se não me engano era seu nome e passei o dia todo a lê-lo. A sova não veio, mas mesmo que tivesse vindo não faria diferença, pois aquela leitura, influenciada pelo temor, despertou em minha alma algo que ela não conhecia: que ela podia se comunicar com outras almas, sentir o que elas sentiam em um momento inspiracional qualquer de suas existências, tudo isso tendo como canal os livros. Aí os livros já não eram mais os mesmos nem eu a mesma pessoa.

Uma nação se constrói com homens e livros, já disse isto, às vezes só com os homens, infelizmente.

sábado, 19 de setembro de 2009

Cartão vermelho




Semana passada a colega Sílvia Gonçalves sugeriu a seguinte brincadeirinha: que um grupo de pessoas indicadas por ela, escolhesse dez notáveis para receber um cartão vermelho. Como achei a coisa parecida com uma corrente, não irei quebrá-la.
1. Para Sarney, o dono do Maranhão: Este aqui eu não nem perder tempo explicando porque estou fazendo isso;
2. Para Lula: É, um dia todos nós perdemos o nosso herói de infância. Lula, para mim, era vidro e se quebrou;
3. Gripe suína: Eu já não agüento mais o clima de paranóia em que vivo;
4. Ministério da Saúde: Parece que eles também pregaram gripe suína;
5. Para o trânsito de minha cidade: aqui está um caos;
6. Para a novela do Manoel Carlos: Poxa, ele já escrevia sobre futilidades, agora que é sobre o mundo da moda, acabou com tudo;
7. Para nós brasileiros: Que vamos esquecer toda essa bagunça de Brasília no próximo ano;
8. Para nós brasileiros, de novo: A média de livros lidos anualmente pelos brasileiros é de apenas dois;
9. Para a má vontade de quem se nega a resolver as coisas mais simples;
10. Para todos nós no mundo inteiro: que somos incapazes de enxergar o outro.

domingo, 6 de setembro de 2009

Minha tribo sou eu


Eu não sou cristão, eu não sou ateu.

Não sou japa, não sou “chicano”, não sou europeu.

Eu não sou negão, eu não sou judeu.

Não sou do samba nem sou do “rock”, minha tribo sou eu.

- Zeca Baleiro, Minha tribo sou eu

Desculpem se começo cantarolando. Não estou transformando isto em um musical, ainda reservo este espaço para crônicas. Esta música pertence a um conterrâneo amigo meu, chamado Zeca Baleiro. Vocês já devem ter ouvido falar dele, é só um pouquinho mais famoso que eu. Começo com a música simplesmente para ajudar a relatar um episódio muito singular que tive a oportunidade de estar presente.

Todo mundo já fez ou quem sabe ainda faz parte de alguma “tribo”. Digo, todos nós como parte de um todo social, fazemos parte de algum grupo. Vale qualquer coisa: turminha do colégio, coral da igreja, fã clube dos Menudos (há gosto pra tudo), torcida organizada do XV de Jau, o pessoal do “Orkut”. Além do quê, sempre é gostoso ter uma “galera” que fale a “nossa língua”. Só que tem gente que é exagerada.

Estava eu na faculdade, na companhia de dois colegas. De antemão aviso que os nomes foram trocados por descrição e porque ainda travo relações com essas pessoas. João e Maria, chamá-los assim me parece adequado. Voltando à história, os meus colegas são tão radicais em suas posições ideológicas que fazem o pessoal da esquerda da esquerda parecer de direita. Metidos com política estudantil e tudo mais. Conversávamos sobre assuntos que não versavam matéria política – o que para eles devia ser uma heresia, para mim era um alívio. De repente, de um dos vários corredores do prédio, surge um sujeito maltrapilho, trajando uma jaqueta ensebada, com o aspecto de quem está há dias sem banhar e sem parar de beber. Apresentou-se com a cerimônia que a circunstância poderia exigir. Começou então a falar peripécias de sua vida. O que narro aqui são fragmentos de uma fala entrecortada por grunhidos ininteligíveis e um sotaque baiano, um tanto incomum para quem se dizia sergipano. Eram histórias de noites ao relento; grandes porres e a depredação de uma fábrica que poluía o leito de um rio, fato que ele deu o nome de engajamento político. Nem preciso dizer que meus amigos estavam achando o máximo.

“O que vocês tão tomando aí, é cachaça?”, perguntou Sérgio ou pelo menos foi assim que disse que se chamava, deixando no ar o hálito de quem acabara de tomar a própria.

“Não. É café”, disse Maria.

“Eu quero”, disse-lhe enquanto tomava – sem consentimento – o copo de suas mãos e entornava de uma só vez todo o líquido.

Ele não parava de falar e eu – tirando pequenas contribuições insignificantes – mantinha-me com reservas, até o momento em que ele puxou de sua jaqueta surrada uns quatro livros.

“Apresento-lhes a jaqueta da expropriação”, disse-nos num misto de heroísmo e orgulho.

“Isso deve ser uma tática de guerrilha”, disse João. “Onde foi que você arrumou?”

“Expropriei de uma feira de livros”.

Diante daquela confissão não me contive.

“Aqui em São Luís isso tem outro nome: é roubo”, disse.

Sergio, dirigindo para mim um esgar de fúria, disse-me uns três impropérios, prometendo retirar-se, promessa que cumpriu em seguida – não sem antes tentar vender os frutos da jaqueta da expropriação.

Ficamos os três calados, olhando nosso visitante sergipano de sotaque baiano partir sabe-se lá para onde. Não demorou muito para o silêncio ser quebrado.

“Cara”, disse Maria, “o que era aquele sujeito? Pensei que fosse marxista.”

“Que nada”, emendou João, “tá na cara que era leninista.”

“Não. Acho que faz parte de alguma facção trotskista. Você não viu como ele falava em expropriação”, retorquiu Maria.

“É, mas não se pode negar que havia no discurso dele um quê de UJS e aqueles caras são mesmo uns porcos.”

“Absolutamente, camarada João (foi, ela falou desse jeito mesmo, que nem nos bons tempos da velha URSS), não há a menor chance disso.”

“Bom, pelo menos sei que não estava com nenhum livro do Plínio Salgado. Havia sim uma postura de caçador de integralista em seus olhos”, ponderou o camarada João.

“Devíamos tê-lo convidado para a Marcha Operária do pessoal da Facção Vermelha, que vai protestar na frente do diretório do PMDB”

Vale ressaltar que eu já estava meio de lado desde a conversa do Sérgio, então, diante de todas aquelas denominações e siglas, estava me sentindo um verdadeiro alienígena. Graças a Deus eu sabia o que era o PMDB, só por isso pude protestar sem me sentir tão desmoralizado assim.

“Para mim, o que ele é mesmo é um ladrão. Entenderam? L-A-D-R-Ã-O”, sentenciei. “Quanto a mim, sou católico, fui coroinha e torço pelo Flamengo.”

Parti irritado em direção a um ponto de ônibus, entendendo porque certos círculos são tão reservados. Pareceu para mim – pelo menos naquele momento – que para entender que diabos eles estavam falando, bastava que eu não entendesse coisa com coisa, o que para mim era tarefa muito complicada. No caminho do ponto de ônibus havia uma lanchonete, a televisão estava ligada, sintonizada no Programa do Ratinho. Resolvi sentar em um dos bancos disponíveis. Pedi um misto quente e um refrigerante e comecei a assistir à televisão. Como era bom conseguir entender alguma coisa.

sábado, 5 de setembro de 2009

Indicação de selo


Passei aqui para agradecer a indicação de selo feita pela colega Silvia. Muito agradecido. Andei me informando a respeito dessa premiação e descobri que ela possui umas regrinhas. Dentre elas indicar algumas pessoas. Então eis minhas indicações:

domingo, 30 de agosto de 2009

As grandes verdades do mundo


Antes da preocupação mundial com o H1N1, eu já tinha um zelo excessivo com a higiene das minhas mãos. Hoje em dia nem se fala! Há alguns anos, um amigo reparava com curioso afinco o modo como eu lavavas. As lavava meticuloso: palmas das mãos, dorsos das mãos, divisões dos dedos, dedos individualmente, pontas dos dedos. Terminada a lavagem, desligava a torneira com o cotovelo, nem as enxugava, apenas as sacudia.

Incomodado com o olhar de meu amigo, perguntei:

“O que foi?”

“Por que você lava tanto as mãos?”

“Você não sabe”, disse com os trejeitos de um sábio. “As mãos, meu querido, são as partes mais sujas do corpo humano. Você as passa em todo lugar, você as leva à boca, aos olhos, ao corpo todo. É por isso que me preocupo tanto com elas, lavando-as o tempo todo.”

Meu amigo me encarou e, sem o mais leve estremecimento, retorquiu:

“A parte mais suja do corpo do homem é a cabeça dele.”

Foi nesse dia que aprendi que grandes verdades podem ser repassadas assim, sem a menor preparação, nas situações mais inesperadas e vindas de tão estranhos mestres.

domingo, 23 de agosto de 2009

O poder da criatividade




Não sei por que, hoje acordei pensando em papilas gustativas. Sim, papilas gustativas, aquelas que ficam na língua. Deus inventou coisa melhor que papilas gustativas? Existe algo melhor do que vir da rua, cheio de sede, abrir a geladeira, tomar uma limonada, botar as tais papilas para funcionar e ser prazerosamente atingido por aquilo de mais simples que as sensações podem oferecer? Deus não é realmente criativo?

Deus inventou o homem. O homem é criativo, capaz de inventar muitas outras coisas também (claro que nada se compara às papilas gustativas). Inventou a roda, o carro, o avião, micro-ondas, celular, feriado (ah, isso não, o feriado também foi criado por Deus, no sétimo dia da criação, conforme no livro do Gênesis), a dança, a poesia, o pistache (aliás, o pistache é algo que se fabrica ou se colhe?). Criou a angústia, o desespero, os ansiolíticos. Curiosamente, antes de inventar a arma, o homem inventou o homicídio. Cá entre nós, o homicídio não parece ser uma de suas invenções mais sensatas, afinal, para quê matar uma pessoa que vai morrer de qualquer jeito?

A criatividade sempre foi uma ferramenta essencial quando o assunto é andar para frente; avançar no tempo (tai outra invenção nossa: o tempo e a falta dele). Com a criatividade fizemos grandes descobertas e elas custaram sangue, suor e lágrimas – que nem no discurso de Churchil. Inexoravelmente o ponto de partida é o mesmo de chegada, a máquina do mundo gira por causa das perguntas cujas respostas nem sempre podem ser agradáveis. Pontes, prédios, cidades, estações espaciais e ainda assim se pergunta sobre a realidade fundamental do mundo. Quem é que pode saber disso? Uso meu mp4, ele toca música e daí? Vou ao “shopping”, faço compras, assisto à televisão, converso pelo meu celular e não me interesso minimamente pelo que faço. Inventos como esses e tantos outros, postos no mundo por causa de nossa criatividade, se fazem necessários para responder determinadas perguntas. Só que haja criatividade! Ainda não resolvemos os problemas que surgiram quando se tentava resolver outros problemas e mesmo assim continuamos a inventá-los. Criatividade mesmo é quando pensamos que o fundamental ainda é se espantar; é ainda ter o instinto necessário para se perguntar sabiamente – como faziam os antigos. Se a resposta irá vir, aí já serão outros quinhentos! Ai, ai, ai, não gosto de pensar nisso tudo, começa me dar a idéia de que posso ser apenas o pensamento de alguém; de que não tenho sequer certeza de que aqui estou, escrevendo isto para vocês. Nestas horas bate depressão, desespero, ignorância e até sede. Falando em sede, vocês ainda lembram da história das papilas gustativas? Alguém aí aceita uma limonada?

domingo, 16 de agosto de 2009

A angustia da página em branco


Quem escreve, em geral tem um único tipo de preocupação: escrever. Nem precisa ser de maneira profissional, basta que o texto seja satisfatório a quem se destina ou até mesmo para o próprio autor (eu, por exemplo, tenho pilhas e pilhas de texto que adoro, contudo considero-os impublicáveis). Sendo assim, os fins de semana me deixam impaciente, já que é o período em que tenho que escrever algo novo, e por isso mesmo sinto que as palavras meio que fogem de mim.

Alguém certa vez disse (ou, mais adequadamente, escreveu) que a luta com as palavras é a luta mais vã. Afirmativa verdadeira em muitos aspectos. Diante das palavras o escritor se torna um guerreiro ou até mesmo um xamã que exorciza a falta de criatividade, atraindo para si os bons espíritos, as boas idéias, o bom texto. É sério, escrever até parece magia quando nos vemos hipnotizados por um bom livro. Neste instante mesmo contemplo alguns magos e seus feitiços, aprisionados em minha estante: Machado de Assis, Rubem Fonseca, Vargas Llosa, Gustave Flaubert, Honoré de Balzac e por aí vai.

(ah, bom Deus, fazei-me instrumento de vossa vontade, transformando vossas imagens oníricas em um texto capaz de encantar as multidões!) Às vezes, fervoroso, clamo ajudas aos céus para superar os desafios de uma página em branco; outras, ateu, amaldiçôo-me na minha própria falta de fé. Tem gente que quando escreve é toda alma e tem gente que é toda cabeça. Uns sabem, outros inventam. Alguém consegue fazer o dever de casa ou então joga verdadeiros Lusíadas no lixo. Com inspiração, sem inspiração. Com texto, sem texto, os resultados de minha concentração ainda me espantam. Escrever é luta solitária que não se pode vencer sozinho. Envolve a solidão e o crepúsculo, mas também envolve as vozes do passado – os autores que um dia lemos – e a aurora. Não importa o resultado que se alcance, meu texto vai ser no máximo bom ou ruim, no entanto, o esforço que desperdiço ao fazê-lo me revela, no final, quem sou e quem somos. E já que se falou em vozes do passado, neste instante mesmo escuto um Drummond de anos atrás: “Palavra, palavra (digo exasperado), se me desafias, aceito o combate”.

domingo, 9 de agosto de 2009

Dia dos pais


Para Meu Pai



Tem um conto chamado “Idolatria”, de Sérgio Faraco, presente na coletânea “Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século XX”, que me marcou muito. Até hoje penso no eco que aquela pequena história deixou em mim e penso nela como a genuína admiração que temos pela figura de nosso pai, é justamente disso que o conto trata: as descobertas que pai e filho fazem de si, enquanto estão presos no carro por causa de um atoleiro, tudo sob a ótica da criança que narra a história. Citei o conto porque no fundo eu e meu pai sempre fomos um mistério um para o outro; “presos num atoleiro”, obrigados a achar a resposta que completaria um de nós.

Travei com meu pai uma relação por vezes desarmônica. Que ninguém se preocupe, não vim fazer análise, só me certificar que assim como eu, muitos outros filhos também tiveram sua cota de mistério com seu genitor. A relação pai/filho, talvez seja um desses grandes confrontos que nós, homens, temos de enfrentar para saber como é a vida. Não sei como vocês foram criados, mas entre mim e ele, não houve tantos sorrisos quanto desejei que tivessem. Talvez tenha sido por essa carência que eu tenha aprendido a valorizar tanto os poucos que vi brotar de seus lábios. Não sei se a origem disso é a cultura ou outro motivo qualquer. Bom, a família de meu pai não está tanto tempo assim no Brasil. Se não me engano, meu bisavô veio de Portugal, instalou-se no Ceará, na cidade de Sobral. Lá, no meio do sertão cearense, nasceu Joker Ribeiro, meu avô. Então meu avô resolveu migrar para o Maranhão, cidade de Codó, por lá foi chefe de uma estação ferroviária e teve vinte e cinco filhos, entre eles meu pai, Raimundo Ribeiro. Este último, veio para São Luís, casou, enviuvou, casou de novo, desta vez com minha mãe, e teve, com duas famílias, seis filhos, sendo eu, Thomaz Ribeiro, o seu penúltimo. Esta é mais ou menos a minha genealogia: da Península Ibérica para o sertão do Ceará, do sertão do Ceará para a aventura no Maranhão. Uma criação empurrada em navios, sufocada nas areias do sertão e entre os frios trilhos de uma ferrovia. A família Ribeiro gerou homens laboriosos, de forte sentido prático e com pouca – ou quase nenhuma – capacidade de expressar sentimentos.

Este é o quinto dia dos pais que passo sem o meu. O seu Ribeiro, como nós o chamávamos, faleceu em 2004, aos 66 anos. O que ficou em nós, que aqui ficamos, foi a saudade. Hoje sou o centro do dia dos pais, sou eu quem recebe os presentes, mas, é claro, sinto sua falta, a ponto de muitas vezes esquecer que ele não está mais por aqui. Perto de falecer meu pai ainda me ensinou muitas lições. Tivemos a oportunidade de por muita bagunça em ordem, de botar os pingos em quase todos os “is”. Entender o que se passa na cabeça do outro não é lá tarefa muito – e se o outro ainda por cima é o próprio pai, pior ainda. O que queremos mesmo é que gostem da gente do jeito que sabemos gostar e convenhamos isso é impossível. Mas até se ter a consciência dessa impossibilidade, já se “bateu muita cabeça”, já se cometeu muito equívoco e se falou muita bobagem. Meu pai me ensinou que às vezes nos enganamos e que somos capazes de cometer os mesmos erros que eles. Que às vezes a falta de tato, um gesto que possa parecer mais brusco, não significa que nossos pais não gostem da gente, mas que apenas possuem uma maneira diferente de se expressar e que por mais que essa maneira não pareça ser adequada, é o que se dispõe, mas também o que se pode negociar. Aprendi que seu Ribeiro tinha uma maneira só dele de gostar, de sentir orgulho, como quando ganhei um concurso de poesia e ele incrédulo falou: eu não sabia que tu eras poeta. Esse era seu Ribeiro, esse era meu pai. Meu nome é Thomaz Ribeiro, sou casado, tenho crianças e ainda choro de saudades quando penso nele. Se um dia meus filhos gostarem de mim metade do que gosto do meu pai, com certeza serei um sujeito muito orgulhoso. De onde ele está, sei que sabe que isso é verdade e que mesmo sendo uma declaração diferente, como ele era, essa é uma maneira – que por mais que relutasse, herdei dele – de expressar o que sinto.

P.S: Hoje eu tinha outra crônica em mente. Falar sobre o dia dos pais é muito óbvio, mas sou assim mesmo, óbvio demais. A todos, feliz dia dos pais.