domingo, 21 de junho de 2009

A dimensão humana


Sou um ignorante. Não estou tendo um acesso de humildade ou um arroubo socrático qualquer. Acontece que o mundo gira tão rápido e as informações vão se sobrepondo tanto umas sobre as outras, que às vezes temos a impressão de que nossa capacidade de processá-las se torna pequena. Então é por isso que me admito como um ignorante. Tendo vistas abrandar minha falta de sabedoria, formulei um projeto ambicioso que consistia em ver tudo aquilo que negligenciei ao longo de meus 27 anos. A proposta era ler um livro qualquer (porque não interessava a sua área de conhecimento) em pelo menos uma semana. Confesso que não estava me saindo mal, avançava em meu objetivo com regularidade e obstinação. Entrei em contato com as obras de Roterdã, revi outras de Platão. Fiz um passeio pelo Realismo Fantástico e li autores argentinos como Tomás Eloy Martínez. Deliciei-me com os curitibanos Dalton Trevisan e Cristovão Tezza (este último curitibano por adoção). Mas há mais ou menos três semanas vislumbrei a chance de preencher uma lacuna em minha vida: até então nunca havia lido nada de Clarice Lispector.

Clarice Lispector, juntamente com seus lindos olhos, é um caso à parte dentro da literatura nacional e quiçá do mundo. Dona de um estilo todo dela, esta ucraniana radicada no Brasil, não podia ser mais brasileira, ao narrar tipos e fatos que, assim como a sua literatura, passeavam com desenvoltura entre vários estilos. Posto desta maneira, como não ler o que ela escreveu? Foi o que resolvi fazer. Então comecei pelo óbvio, pelo começo. Li obras como Perto do Coração Selvagem e O Lustre. A leitura era boa e fluía gostosamente. Passei para alguns livros de contos como A Bela e a Fera e fui me empolgando com aquele psicologismo, com aquela leitura do humano que ela fazia tão bem. De repente, creio que cheio de mim, ignorei o fato de que os livros, assim como seus criadores, vão se tornando mais exigentes com o passar dos anos. Pois não achei de ler, sem o menor preparo, logo o romance Água Viva! Foi como se eu tivesse uma overdose de Clarice. Para quem ainda não leu, trata-se de um de seus últimos trabalhos, uma espécie de romance, só que sem o romance. O livro descreve um “Eu” que se direciona para um “Tu” indeterminado, onde se misturam ânsia, delírios e certo tom confessional. Obra complexa e de acessibilidade duvidosa. Para um sujeito conservador como eu, no princípio (me perdoem os mais experimentados leitores de Clarice) achei obscuro e chato. Depois, tolerável e no fim (já totalmente rendido) cri que ela sabia das coisas.

Clarice Lispector morreu aos 52 anos. Portanto, jovem. Seus últimos trabalhos (aí, já é uma leitura que eu faço) me parecem mais experimentais, como se buscasse uma nova linguagem para aquilo que queria dizer. Água Viva me parece um desabafo de quem se descobre. De quem sobe à tona. De quem queria compreender a dimensão humana. Foi assim que vi Clarice.

Quando falo em dimensão humana, falo de toda grandeza que advém da humanidade, grandeza essa que reside na sensação de completude da alma, mais ou menos como é descrito em alguns mitos que conhecemos. Ora, vivemos hoje o oposto. Cada vez mais sozinhos, buscamos entender as causa mais elementares – quem sabe em busca dessa completude perdida. Uma rápida olhada nas coisas ao nosso redor e veremos como está em alta o investimento em cursos de relação interpessoal. É como se de repente as instituições se debruçassem sobre nós e chegassem à conclusão de que carecemos de conteúdo emocional. Como se estivéssemos ocos. Sim. Ocos, verdadeiras cascas vazias. E é por meio desse vazio que as coisas vão acontecendo. Os ansiolíticos são os campeões de vendas da voraz indústria farmacêutica – cada novo remédio disposto a preencher um novo vazio. Quanto aos especialistas do sofrimento humano, estes sabem cada vez mais sobre cada vez menos e isto acaba credenciando-os mais ainda a empurrar fórmulas de sucesso prontas. Depois de cada consulta (seja com o psiquiatra ou o guru), continuamos sem entender nada. Não conhecemos ninguém nem a nós mesmos – tamanha é a escuridão em que nos enfiamos. Já me disseram que é para frente que a História anda. Então não deixa de ser engraçado que com tantos esses anos de acúmulo de conhecimento, as características mais notadamente humanas: o próprio conceito de humanidade; o olhar-se; o entender o outro, tenham caminhado diametralmente opostos a nossa própria História. Clichê? Pode ser. Vai ver que é porque não sou o único que pensa assim.

A Clarice Lispector pode até não ter compreendido a condição humana, mas já fez um bom começo ao olhar para si mesma.

sábado, 13 de junho de 2009

Sobre o que vale a pena


Para Hillana

Dia desses, conversando com minha filha, nos indagamos sobre o desejo do homem de passar para a posteridade. A nossa pergunta incidia na vontade de saber se tal desejo era lícito ou se era tão somente fruto de nossa vaidade humana. Pelo que eu saiba, existem várias maneiras de se entrar para a História, de se tornar imortal. Uns fazem isso tendo filhos, pois são eles que passam o legado dos pais adiante. Alguns são heróis, nossos símbolos de bravura das horas em que mais precisamos. Outros fazem arte e permanecem eternos por conseguirem afetar os nossos sentidos. E ainda há aqueles que querem permanecer no imaginário de qualquer jeito, seja por meio do ridículo, do apelativo, do medo ou da dor. Mesmo sendo diversos, fazemos parte da universidade e eu e minha filha não somos diferentes, também queremos fazer parte da História do mundo e o caminho que escolhemos foi a arte. Eu quero ser escritor, ela quer ser artista plástica. Tendo em vista as nossas aspirações, acabamos crendo que temos uma missão a cumprir, que somos muito importantes, até mesmo intocáveis. E é assim com todo o resto da humanidade, a mesma sensação de que se é essencial para o mundo.

E foi pensando nessa pretensa importância, na grande contribuição que o mundo espera de nós, é que pensei nas vítimas da tragédia do voo 447 da Air France, me dando conta de o quanto somos frágeis em todos os sentidos. A tragédia ocorrida sobre o Oceano Atlântico, além de transformar pessoas em estatística, amputou sonhos e separou vidas. O 447 era uma espécie de microcosmo, uma fatia do que somos todos nós. Dentro daquele avião, tudo podia estar acontecendo, talvez amantes estivessem viajando juntos ou quem sabe estivessem para se encontrar, dispostos a enfrentar um oceano para fazê-lo. Filhos ou pais podiam estar se revendo ou se despedindo. Quem sabe tivesse gente que estava viajando para esquecer os problemas ou quem sabe estava para recomeçar a vida no Velho Continente. Quem sabe havia gente que morria medo de viajar de avião ou que nunca imaginou sofrer um acidente de avião.

258 pessoas. 258 vidas. Para o filósofo dinamarquês Soren Kierkegaard 258 existências que se foram. Essas pessoas deixam muita coisa para trás, são vidas que não voltam, instantes que só acontecem uma vez. As pessoas que estavam dentro daquele avião não em nada eram diferente de nós, qualquer um podia estar naquele avião. No fim das contas, o que é entrar para posteridade? Que importância isto tem para nós?

A importância de quem somos não é medida por quem somos, mas pelo que fazemos, pelo o que os outros carregam de nós. A morte, do jeito que ela vier, é um evento violento que simplesmente nos arranca deste plano de existência, jogando-nos no desconhecido. É preciso que estejamos em dias com tudo, que estejamos preparados, não para morrer, mas para deixar algo que valha para a vida toda. A vida, até onde se saiba, é apenas uma e é necessário que ela seja explorada no que realmente ela vale: com nossos filhos, com nossos pais, com nossos amigos. Com o que importa. O poeta Ivo Lêdo sintetizou bem sobre o que vale a vida de um pai: “Ser pai é ensinar ao filho curioso o nome de tudo: bicho e pé de pau. Que o pai, quando morre, deixa para o filho o seu montepio – tudo o que juntou de manhã à noite no batente, dando duro no trabalho. Deixa-lhe palavras”. No fim das contas é o que resta. Palavras.