domingo, 27 de dezembro de 2009

Os grandes mistérios do mundo

Quanto menos inteligente um homem é, menos misteriosa lhe parece a existência.

– Arthur Schopenhauer

Quando criança eu queria a solução dos mistérios do mundo. Também achava difícil uma explicação de base material para tudo o que existe. Duvidava, mas não com estas palavras, duvidava com palavras de criança. Apelava sempre para uma retorsão que ia até o infinito e terminava por dar um nó em minha cabeça. Deus fez o mundo, fez tudo, mas de onde Ele vinha? Perguntava.

Cresci e como diria Pessoa, estudei, amei e até cri, ainda assim não me satisfazia com o que se apresentava a mim. Estudei filosofia, busquei os mecanismos do mundo e aprendi que existem mistérios que não são tocados pela limitação humana.

Hoje em dia, ainda sem nenhuma certeza de minha existência material, gosto de pensar no mundo como um livro em que Deus escreve continuamente, enxertando ou excluindo personagens da história do infinito. Deus estabelece a trama, cria as reviravoltas da estrutura, vai moldando o caminho das personagens. Fico imaginando que tipo de história faria se esse enredo parasse em minhas mãos só um instantezinho que fosse. O que seria? Um drama? Humor? Ficção científica? Policial? Talvez eu fizesse um poema mesmo, se eu soubesse ser poeta.

Às vezes me angustia pensar que o mistério da vida possa ser apenas o mistério da vida. Eu queria que fosse diferente. A minha vizinha, por exemplo, sempre relaciona o surgimento de um fenômeno natural aos seus joanetes doloridos ou então justifica a ruína financeira de alguém por meio de uma série de eventos comuns como o mau olhado – nada que um galhinho de arruda não dê jeito, ela diz. Para ela o mistério do mundo não existe, pois as causas do mundo estão no próprio mundo, para que todos possam ver. Se ela não consegue responder algo, diz que foi a vontade de Deus e pronto, tudo resolvido. Minha vizinha não sabe quem foi Platão. Nunca deve ter lido Kant. Não sabe para que servem as leis de Newton. Exegese bíblica para ela deve ser palavrão e com certeza não sabe que graças a Einstein o universo não é mais plano como cria Euclides. Nossa, tem gente que realmente sabe o que é viver.

domingo, 20 de dezembro de 2009

O dia que a floricultura fechou





Trazia minha mãe de uma consulta médica, onde a havia levado a fim de que tratasse de alguns reumatismos que os anos lhe deram, quando enfim percebi que a floricultura fechara as portas. Podia tê-las fechado há meses, mas me dei conta somente naquele momento. Como estou acostumado a me locomover para os lugares de ônibus, sendo sempre o passageiro e não o condutor, aprendi a ver o mundo assim, de passagem – o que quem sabe poderia justificar a minha relutância em dirigir. Foi numa das várias olhadas que dou pela janela, entre um dos pontos em que o ônibus se permite parar, seja para a subida ou descida de passageiros, que tomei conhecimento de mais aquela falência. Entristeci.

Sei que uma floricultura é apenas mais um negócio guiado pelos ditames do capitalismo. Porém, se me perguntassem sobre o que preferia ver fechado, uma floricultura ou um banco, mil vezes diria o banco. Um banco trabalha com variáveis, com taxas de câmbio, estatísticas, com números. Enfim, com o que é relativo ao dinheiro. E as pessoas que trabalham no banco ou dele são clientes, estão sempre de um dos lados do balcão de atendimento, guarnecidos de quaisquer emoções. Uma floricultura não, ela é diferente, mesmo que esta seja voltada para o lucro, ainda assim existe nela um exercício de paciência, onde está envolvida a dedicação e até mesmo o amor dos seus envolvidos. Uma floricultura trabalha com o belo, com os sentidos, com a alma. E no fim das contas, o bem que se almeja não é o do comerciante nem do comprador, mas daquilo que é vendido, as flores.

Em nossos dias conferem-se nos dedos as artes preocupadas em realizar o melhor que elas possuem em si mesmas. Boa parte delas, senão sua quase totalidade, vem se preocupando com o que é mais eficaz, mais lucrativo. Se não é capaz de atingir o esperado, fecha as portas como a pobre floricultura. O que me faz pensar se nossas paixões não andam sendo pautadas por esse sentimento de poder e conquista que não permite um olhar desinteressado em proveito daquilo de mais importante que tem o humano: a sua humanidade. Escrevo entristecido ao constatar essa amarga verdade e ao fazê-lo contemplo um belo vaso de flores de plástico. As flores de plástico não morrem, este é o problema delas.

domingo, 13 de dezembro de 2009

Quase crônica

Ainda me fascino ao ver o velho escritor trabalhando. Hoje acordou querendo escrever poesia. É uma pena, pois está lhe faltando um coração para ser um poeta. Como não pode fazer verso, tenta ir de prosa mesmo. Começa. As mãos permanecem quietas. Sabe que escrever requer vontade, esta não lhe falta, só que é preciso mais que isso. Falta um elemento que a transforme, que tome emprestado aquilo que está em seu peito cansado e o traduza em palavra. Inspiração.

O pensamento solto. A ponta da caneta mastigada. A página em branco. A fome da palavra. Vai escrevendo e o que vai saindo no papel não chega a ser a crônica, mas sim a vontade dela de se insinuar no mundo, de tornar solene o fruto do matutar de uma cabeça qualquer. Somente palavra escrita.

Cai a noite. Nada. Olha pela janela: a rua onde tudo isto se dá ainda é a mesma, enquanto o mundo todo que está em sua cabeça tenta se transformar em sua imagem e semelhança. Mas ainda não consegue escrever. Passa o tempo. Passam as pessoas. Passa um cachorro que persegue um pobre gato. As estrelas brincam de brilhar no céu e algumas crianças – indiferentes às revoluções do Universo e de sua cabeça – pulam amarelinha. Larga a caneta. Diante de tudo isso, pelo menos por hoje, o mundo não vai precisar de sua contribuição.

domingo, 6 de dezembro de 2009

Notícia de jornal


A cena foi rápida, portanto é forçoso que se excluam deste relato os seus mínimos detalhes. Um garoto entra em uma rua, montado em uma bicicleta. Dos cós de sua calça tira uma arma e, ainda em movimento, atira duas vezes. No outro extremo de sua ação, o objeto de sua fúria é outro jovem – um desafeto seu, pelo menos é o que se pensa. Neste momento em que são antagonistas de mais um fato do mundo, a única coisa que podem ter em comum é a sua juventude, ambos não devem ter mais que vinte anos. Quem se vê diante da morte, instintivamente não vê outra saída senão fugir e não se pode dizer que o segundo rapaz não tenha tentado, mas os dois tiros que o rapaz da bicicleta deu, atingiram-lhe no abdome e na coxa. Mesmo assim, e desesperadamente, ele corre, quem sabe em reminiscência de carreira dada na infância. É em vão. Cambaleia e cai em frente ao portão de uma vila próxima que, aliás, está fechado. Permanece ali, impotente, incapaz de defender a si mesmo. Em quais atividades poderia estar seu pensamento concentrado? No resto de dor que deveria estar sentindo antes que se desligassem seus sentidos? Na desagradável surpresa do momento? Na débil chance de sobreviver à tragédia pessoal? No medo de quem simplesmente sabe que vai morrer? O rapaz da bicicleta se aproximou, viu o outro agonizando, se contorcendo em dor. Efetuou mais quatro disparos, todos na cabeça. Deus fez o homem no sexto dia e não há quem, em seu íntimo, não se espante ao ver tanta indiferença com o labor divino. O rapaz que se transformou em assassino olhou ao redor, viu que ninguém esboçou reação. Naturalmente é difícil encontrar quem se indisponha com alguém que notoriamente tenha assassinado uma pessoa e se este que tem as mãos manchadas de sangue ainda tiver nelas a arma do assassínio, é até prudente que não lhe sejam negados certos caprichos como o de deixar o local do crime. E assim, livre de impedimentos, o rapaz da bicicleta só poderia ter fugido. Eram nove horas da noite de uma segunda-feira.

Quando a mãe arranca de suas próprias carnes uma criança, se supõe que ela – a mãe – queira daquela que adentra no mundo, por seu intermédio, o melhor, haja vista a relação de intimidade que possuem: um fruto das entranhas da outra. Existem casos em que essa relação não é possível, pois é inegável que existem fêmeas que não nasceram para a maternidade. Felizmente esses casos são tratados genericamente como desvios da regra. A maior parte das fêmeas abraça seus filhotes e suas causas ou assim imagina proceder. O rapaz que há pouco fora assassinado, decorridos então cerca de vinte minutos entre o ocorrido e a chegada de sua mãe, provava assim estar inserido na regra. Dizem ser indizível a dor de uma mãe ferida na própria carne. Aqueles que crêem na Bíblia Sagrada, por exemplo, podem afirmá-lo no sofrimento, muito bem descrito nos quatro evangelhos, de santa virgem Maria ao ter nas mãos os despojos de seu filho. Aliás, o próprio Jesus Cristo, que nada consta ter acalentado nos braços um filho, devia ter a dimensão da importância de um. Se assim não fosse, não se teria dado ao trabalho de restituir o filho único de uma viúva, como se pode constatar em são Lucas, capítulo sete; versículo onze. De ascendência menos nobre, mas tornada irmã da santa ao ser destituída de seu filho, a mãe sofre na santidade de seu sofrimento. Não imaginando que aquela criança, cuja boca faminta apertara com força contra o seio e que em noites turbulentas de fome e febre pusera para dormir no mais nobre dos berços que pudera dar, havia recostado para descansar a cabeça, pela derradeira vez, no chão imundo de uma calçada; berço indigno para qualquer um da humana raça, desesperou-se em um desespero de muda palavra e o que apenas se ouve é um ganido, linguagem bruta da alma, ainda sem tradução. Descontrolada diante do cadáver é arrastada para longe de seu filho, enquanto a multidão – que já estava formada há algum tempo – reocupa o pequeno lugar que se lhe havia tirado.

Vinte minutos após a retirada dramática da mãe chega uma ambulância – que dadas as circunstâncias não possui a menor utilidade – e uma equipe de televisão. Depois chega um carro da polícia técnica e por fim duas viaturas; a primeira é ocupada pelo delegado de plantão que, assim como o repórter que tumultua a cena do crime com as suas perguntas tendenciosas, investiga e indaga alguns moradores.Já na segunda viatura, para a surpresa dos que não crêem na eficácia da polícia, estava o jovem que assassinou o outro, com o rosto encostado à janela da porta traseira da viatura. Não se sabe ao certo as circunstâncias de sua prisão, mas se sabe que não se afastou muito do local do crime. Foi pego já sem a bicicleta e arma com que cometeu o homicídio. A se ver em desvantagem numérica e bélica, apenas rendeu-se sem oferecer resistência maior do que aquela de quem se vê repentinamente privado de liberdade. Pode-se ver, por trás das luzes das sirenes e câmeras de tevê, seu olhar fitando o vazio; o seu rosto se contorcendo de tempos em tempos ao divisar o local onde, por trás das pessoas, deve estar o corpo do jovem que matou. Não há remorso em seu semblante, mas se percebe nele a absoluta falta de esperança em relação a algum futuro. Olhando-o mais de perto, sem a profusão de luzes, nota-se seu rosto liso e sua expressão de criança assustada que não sabe direito o que fez. Quarenta e cinco minutos depois, o corpo do rapaz é retirado do relento pelo rabecão, após três horas decorridas do assassinato. Em seguida sai a ambulância que não chegou a ser usada. Depois sai o carro da perícia técnica, acompanhado de perto pelas duas viaturas que transportam o delegado e o prisioneiro. Também se retira a multidão que, afinal de contas, não tem mais nada para ver. No local onde permaneceu o corpo do rapaz havia apenas uma grande mancha de sangue que, com empenho dos vizinhos munidos de esfregões e baldes d’água, não demorou vinte minutos para ser retirada. Era uma da manhã quando o último vizinho, que foi à rua para fumar seu cigarro, entrou em casa para dormir.

No dia seguinte o rapaz que foi assassinado e o rapaz que o assassinou ainda são novidade. Um dos vizinhos comenta que o apelido do falecido era Terry, por causa de um jogo de vídeo-game. Pelo que se falou dele, não era flor que se cheirasse. Disseram que era ladrão e ainda por cima já matara outros três. Portanto, ainda segundo o sábio vizinho, teve o fim que mereceu. Se era assassino ou não, não fazia a menor diferença, se não havia encontrado no dia de sua morte mão caridosa que lhe oferecesse um toco de vela, também não encontraria boca que o defendesse de prováveis calúnias. Quanto ao outro o rapaz, cujas circunstâncias denominavam assassino, não se mencionou seu nome, mas alguém disse que sua índole era boa e que não imaginavam os motivos para que cometesse tamanha loucura. Na calçada onde ficara o corpo do assassinado, miraculosamente equilibrados uns sobre os outros, seis sacos de lixo disputavam um apertado espaço.