domingo, 21 de agosto de 2011

Uma questão de imagem


Eu nem queria entrar para assistir àquela exposição, mas como a senhora que estava à porta me convidou com tamanha amabilidade e dado que sou péssimo em declinar certos convites, fui caminhando, sem pestanejar, para a entrada da galeria. Pensando melhor sobre o ocorrido, creio ter entrado ali somente por sustentar a ideia de que a senhora do convite não entendia nada de arte – uma opinião que, imagino agora, só podia ser sustentada por puro preconceito – e aquele esforço em explicar tão metodicamente algo tão complexo, me havia deixado, de certa forma, comovido. A senhora, julguei na hora, em vez de um folder explicativo da exposição, ficaria melhor com um rosário nas mãos. Ela tinha cara de carola. Com certeza estou errado, sei disso.

Era uma exposição fotográfica de um francês radicado aqui em São Luís, o que é muito conveniente para uma cidade fundada pela França. No geral eram fotografias em preto e branco de pessoas comuns de vários lugares do mundo, registradas em seu cotidiano. A fotografia é uma dessas artes que muito me intriga, por parecer fácil. No entanto, a fotografia envolve um grau de sensibilidade muito grande da parte de quem bate a foto. Eu, que ao longo de minha vida fracassei miseravelmente em quase todo tipo de arte que tentei produzir, considero o fotografar difícil, porque o trabalho das imagens exige que se capte a essência delas ou em um sentido mais cristão, o fotografo tem que se apropriar da própria alma da imagem.

Fui passando a vista foto por foto, embora achasse que meu olhar de leigo não pudesse avaliá-las corretamente (se é que elas serviam para este fim), mas fui me sentindo tocado por todos aqueles lugares que eram lugar nenhum. Provavelmente eu havia visitado um ou outro, através dos livros que já li e das histórias que ouvi. Assim como o fotógrafo, gosto de tocar a alma das pessoas quando posso, só que ainda não aprendi a fazer isso com as imagens.

Distraído como estava, não notei o jovem que entrara após minha chegada e que também observava com fervorosa curiosidade as fotos de todas aquelas pessoas e todos aqueles lugares em que ele provavelmente não havia pisado. Por um instante, olhando-o diante das fotografias, na mais absoluta posição de gente curiosa, apercebi-me da imagem que se formava à minha frente. Parecia que eu estava sendo capaz de captar a alma daquela cena, encerrando em minha retina tudo o que aquilo significava: um humano que olha outro humano, tirando do simples evento a poesia que é fornecida pelo instante. Tirei do bolso meu celular, foquei no rapaz, que de costas para mim, não podia me ver, mas não tirei a foto. Devo ter ficado com medo de sua reação ao perceber ter sido fotografado por um desconhecido, que sabe Deus em que poderia estar pensando, em um momento que deveria ser tão íntimo. Ou então não o fotografei pelo simples fato de não ter que fotografá-lo, pois existem momentos que, dada a importância que possuem, não devam mesmo ser registrados.

Aquele instante ficou em minha cabeça e resolveu simplesmente não sair de lá.

sábado, 13 de agosto de 2011

Comunicado

Boa noite a todos.

Gente, gostaria de informar aos senhores que me mantive afastado para que fossem resolvidos alguns problemas pessoais. Como sempre achei que a escrita requer certa paz de espírito e muito respeito ao se compor algo, achei mais sensato me abster de um prazer tão grande.

Informo a quem se sentir interessado que a partir da próxima semana volto a escrever com regularidade e também visitar o espaço de alguns grandes camaradas que tenho na blogosfera. No entanto, não me limitarei ao Palavras Que o Vento Leva, onde falo de minhas impressões do cotidiano, mas passarei a atuar nos outros blogues que também possuo, A Casa da Filosofia (onde abordarei filosofia numa perspectiva não acadêmica) e o Café, Pipoca, Cinema & Literatura (um lugar para se falar de 6ª e 7ª artes, respectivamente, boa literatura e bom cinema).

Bom, aqui seguem os links:

http://cafepipocacinemaeliteratura.blogspot.com/

http://acasadafilosofia.blogspot.com/

O Café, Pipoca, Cinema & Literatura ainda não possui postagens, mas começarei a postar na próxima semana. Então até lá.

segunda-feira, 23 de maio de 2011

Indicação de selo


Embora não ande dando a devida atenção a este blog, não posso ser mal agradecido e esquecer as pessoas que ainda passam por aqui para dar uma lida. Mesmo atrasado (creio que um atraso de alguns meses), publico a indicação de selo de minha cara Petit Gabi do blog Só vim para escrever. Abaixo seguem meus indicados:

Vem cá Luiza, me dá tua mão - Vanessa Souza Moraes

Tais desatinos - Filipe Jardim

Trinta e Poucos anos - Erich

Uai mundo? - do meu inestimável amigo José Cláudio

Porto das crônicas - Taís Luso

Afeto literário - Letícia Palmeira

Maldição eletrônica - José Geraldo

Vanessa Campos Rocha - Vanessa Campos Rocha

Pensamentos que voam - Sil

Só pensando - Adriano Cabral

Inspirar poesia - Mai

Essência abstrata - Sara Portugal

Eu, Thiago Assis-Thiago Assis

Estou numa ilha deserta - M. F. S. Holloway

Entre o sonho e o poema - Viila-Cruz

Todos grandes leituras.

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Os homens do mar


Por entre as grades de proteção da ponte do São Francisco dá para ver o mar – mas que quase ninguém vê quando toda vista vira rotina. Às vezes dizem que o mar não está para peixe, mas por aqui sempre está. Toda hora tem algum pescador de linha, tarrafa ou barco; aqui e acolá uma ave marinha qualquer mariscando na baba do oceano.

Três homens lançam a tarrafa à sorte, tendo ao redor de si um mar agitado, ainda que este lhes bata na altura da cintura. A experiência do mar é suficiente para que tenham respeito por ele e não medo. O utensílio com o qual pescam e que é conhecido por tarrafa tem um aspecto tosco, sem mencionar a impressão de inutilidade que passa. Contudo muito se engana quem à primeira vista de algo relega-o quase que imediatamente aos vasto espaço do imprestável, os pescadores, que não diferenciam essência de aparência, a utilizam com precisão, enquanto a filosofia não se decide.

O mar não é mais visto como antes. Respeito, prudência e reverência são atributos que carrega apenas por ser o que é em si mesmo. Os pescadores, cujas peles brilham ao sol do impiedoso começo de tarde, mais do que tirar das águas aquilo que é capaz de lhes dar sustento e a própria identidade (uma força que define o que somos pelo que fazemos), rezam no silêncio a inconsciente oração do homem que tudo sabe e nada sabe; esquece e não esquece; a oração de quem se espanta com o mundo que tudo cerca de alegrias e tristezas. Os três pontinhos no mar são apenas homens que pescam peixes. O mar não diferencia homens de peixe.

quarta-feira, 16 de março de 2011

Humana oração


Deus – que todos sabem, excede em sabedoria o pensamento de qualquer homem – fez de mim homem pequeno. E mais ainda, pequeno entre os pequenos. De tudo que acontece neste mundo, vejo que em quase nada nele possuo par. Se alguém me aponta algo e diz, e tu, o que achas, me escandalizo e em cólera apenas posso retorquir, que sei eu deste mundo a ponto de me aventurar com a possibilidade de dizer algo sobre ele?

Não penso muito nas pequenas coisas e menos ainda nos grandes milagres que por ora estão cá neste mundo. Penso às vezes nas grandes frustrações, nas limitações que, por natureza, estão presentes em mim e às vezes me conformo ou então simplesmente me debato com o aquilo do qual não sou dotado de entendimento. Sou pequeno, sou limitado e afinal, quem quis que as coisas fossem assim?

Deus, onde estás nesta hora em que me afligem as angustias que me comem o juízo? Dizem que tu, para morares em todo lugar e amar a todos em igual maneira, dividiu-se em pequenos pedaços, porque és enorme e é dessa grandeza de que agora depende o meu espírito – porque embora limitado e frágil como um vaso de barro, tenho um espírito e este é imortal. Deus, que nestas horas vela por mim, que sabes da queda de cada fio de cabelo meu, ampara-me, me mantém atado, untado e firma à tua vontade. Mas eis que brota em mim a condição humana e esta vontade insaciável do Ser tornar-se não-Ser e já não tenho a mesma força de antes. Agora que o pensamento domina a matéria de que sou formado, infundindo em cada fibra da existência o gérmen do medo, volvo ao alto os olhos em busca de auxílio. Deus, tu que és capaz de cuidar das grandes coisas, volta também teus olhos aos pequenos homens!

segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Um adeus a Moacyr Scliar


Sempre fui fascinado pela figura do escritor, até mesmo porque sempre desejei ser um. Em termos de literatura, a minha cidade, diferentemente do que foi no passado, é muito periférica. Os nossos escritores tendem a adotar certas formulas e permanecer para sempre nelas – é uma pena, pois grandes valores de São Luís se perdem ao utilizar velhos truques. Têm também os escritores mais antigos, esses sim, com estilo próprio e talento inquestionável. Posso citar Augusto Cassas, Ferreira Gullar, Nauro Machado, como exemplo dessa estética insuperável.

Conheci os três pelos caminhos da vida, mas sempre senti falta de outros grandes homens de letras, aqueles que estavam para além de meu estado de nascimento. Graças a Deus as autoridades locais resolveram realizar uma feira anual do livro, grande chance de conhecer escritores de muitos outros lugares. Na primeira feira do livro de São Luís, tive a oportunidade de conversar com Moacir Sclyar e acabei corroborando uma antiga impressão que tinha dele: a de um grande homem, cuja atenção por quem está no começo é exemplar. Conversamos, trocamos e-mails e posso dizer que lhe enchi muito a paciência pedindo opiniões acerca daquilo que eu escrevia. Em nenhum momento, e olha que esses momentos foram muitos mesmos, ele se mostrou irritado com minha insistência e leu e comentou tudo o que enviei. Quem é capaz de fazer isso para um desconhecido hoje em dia?

Foi vendo a internet no domingo que soube da morte de Sclyar e fiquei arrasado. Sclyar era um grande homem, não apenas pelo que escrevia, mas pelo tipo de pessoa que foi. Isso não deve ser novidade para ninguém e provavelmente mensagens semelhantes devem correr por toda parte no mundo virtual, mas para mim é muito significativo poder falar de alguém que fez o favor de me ouvir. Com certeza vou reler muitos e-mails hoje e lembrar de conversas antigas, e pensar em um grande amigo e influência que tive. Os últimos dois anos não tem sido fáceis, primeiro Saramago, depois o Sclyar. O mundo anda perdendo cada vez mais um pouquinho de sua cor.

domingo, 30 de janeiro de 2011

Ética para lugares pequenos


Na faculdade de filosofia tive um professor de Ética medíocre (cujo nome não revelo, a fim de ofender a sua mediocridade) que me ensinou que etiqueta era uma espécie de pequena ética. Quer dizer, uma ética para espaços reservados. É verdade, neste mundo em que nos falta filosofia, existem maneiras de se agir bem em determinados lugares – e sempre existem os que agem bem e aqueles que não agem tão bem.

Supermercado é um desses lugares em que devia ter na porta um livrinho de condutas. As pessoas se portam mal e não possuem o menor cuidado umas com as outras. É verdade, já vi, por exemplo, um engarrafamento de carrinhos de compras, veja só uma coisa dessas! Os supermercados andam superlotados? Com certeza, a Walmart sabe fazer muito bem os seus negócios, mas o que provoca uma fila de carrinhos são as pessoas que não sabem posicioná-los, geralmente colocando-os bem no meio dos corredores – um pandemônio só, que revela a falta de preocupação com quem está fazendo compras. O supermercado é um microcosmo, porém o que se faz em lugares pequenos se faz também em grandes: quem empilha os corredores com carrinhos de compras; engarrafa o trânsito com seus carros; empata a vida dos outros com suas resoluções. É só conferir para confirmar o que estou falando.

Por falar em falar, falar dos outros é falar mal e é isto que estou fazendo: falando mal. Peço que me perdoem, é um exercício que acabo praticando involuntariamente. Voltando ao assunto da pequena ética, seria bom praticá-la para se dar grandes saltos, já que as grandes mudanças acontecem naqueles pequenos atos de que tanto falo. Não deveria ter chamado meu professor de Ética de medíocre, afinal, conseguiu me ensinar o que era etiqueta. Realmente se peca pelo mínimo.

domingo, 23 de janeiro de 2011

A mulher, os cães, a enchente


Tenho pavor da morte, como quase todo mundo que conheço. Não interessa como ela venha, se for suave e rápida ou lenta e dolorosa, simplesmente não estou preparado para morrer – sempre vou achar que esqueci de fazer algo. Confesso que acho o medo da morte irracional, ela é inevitável, mas ninguém acredita nela nem que um dia ela virá.

O dramático salvamento da mulher presa em sua laje me deu essa exata dimensão de descrença. Vê-la ali, encurralada pela força das águas, buscando uma ilusória proteção ao lado de seus cães de estimação teve um quê de surreal. Seu olhar fitava o vazio, enquanto as águas derrubavam parede por parede de seu frágil abrigo. Era como se ela não pudesse acreditar no que seus olhos viam (assim como eu também, meu Deus, não acreditava); como se a morte, materializada tão agudamente na forma de enxurrada, não tivesse o direito de estar ali reclamando aquelas vidas tão comuns: o quê, uma mulher idosa e uns três ou quatro cães, era isso que a morte reclamava tão insistentemente. Quando a corda caiu em suas mãos e vozes desesperadas gritavam para que ela largasse o animal, a realidade caiu então plausível em sua cabeça, morreria se permanecesse ali. Amarrou-se e num ultimo arroubo de esperança, tentou carregar o animal que lhe cabia nos braços – a motivação de sua escolha era irrelevante, não interessa se era por causa do tamanho ou se era o bicho de sua predileção, ele apenas estava ali, em suas mãos e mesmo que não raciocinasse, como fazem os homens, seu instinto apontava para a mesma coisa que o raciocínio pronto e acabado da mulher: sobreviver.

O resto da imagem foi exibido nos noticiários à exaustão: a mulher, sumindo nas águas sujas com o cão e emergindo destas mesmas águas sem ele, que desaparecido nas ondas, apenas deixou de existir. Braços, pernas e vozes exaltadas a puxaram para um abrigo mais alto, oferecendo de maneira tão corajosa aquilo que ela buscava tão desesperadamente ao enfrentar a enxurrada, a vida. A morte então havia se consumado em mais aquele pedaço de Rio de Janeiro, pelo menos em parte, já que não conseguiu tragar a mulher. A chuva ainda caia, quando a câmera amadora ainda buscou o que restava do abrigo onde estavam a mulher e os cães, e só podia ser uma coisa, coisa alguma, apenas água. Quanto vale a vida nessas horas é um mistério do tamanho da morte: vale um grito no desespero; uma corda esticada no vazio.

domingo, 16 de janeiro de 2011

A cidade de lama




Em vida, seu Ribeiro, meu pai, não soube o que foi ter grandes dificuldades. Mesmo assim, isso não o impediu de ter consciência das vicissitudes inerentes à vida. De todas as reflexões que tecia, e que acabava me revelando em nossa relação de pai e filho, uma fincou raízes em minha mente: a de que todo homem, por mais que sofra na vida (porque viver, sem nenhuma força de eufemismo, neste mundo é sofrer), dentro do seu lar é um rei. Isso para mim sempre foi uma verdade. Até hoje.

Quando assisti ao telejornal pela manhã do dia 12, uma panorâmica em uma cidade do estado do Rio de Janeiro revelou-me algo incrível: os noticiários exibiam uma cidade que era feita de lama e que o lugar onde havia ruas e casas cedera espaço a toneladas de entulho. O que aconteceu em Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, fez com que eu me perguntasse quantos reis não haviam sido destronados de uma vez só naqueles lugares. E quando falo em destronados, não me refiro apenas à da perda de seus lares, mas à morte de seus parentes e até sobre a perda da própria dignidade. Porque um homem sem seu lar, impossibilitado de defender sua família, não é coisa alguma.

O que aconteceu no Rio de Janeiro, mais do que uma tragédia anunciada, é a prova de nossa curta memória em relação a esse tipo acontecimento, é aquela incômoda sensação de já vimos isso antes. A lama levou mais do que bens materiais, carregou vidas e sonhos inteiros; matou não apenas as vítimas que morreram, mas também matou aqueles que ainda respiram e que doravante carregarão o remorso por terem vivido mais que seus filhos. Roga-se aos céus para que estes dêem aos homens tempo de reconstruir o pouco que conseguiram ajuntar. Roga-se ao tempo que forneça consolo a todos os órfãos, a todos os viúvos, a todos os pais que não tem mais filhos para consolar. No Brasil acontece um Haiti todo ano. O que é fatalidade proporcionada pela natureza, confunde-se com o descaso e o despreparo, e já não se sabe quem é o responsável por tamanha destruição. Nestas horas em que não sabemos de que pátria somos filhos, a quem se deve recorrer? Bom, as autoridades nessas horas sabem fazer apenas aquilo que estão acostumadas a fazer quando a água enche. Elas estão “boiando”.

domingo, 9 de janeiro de 2011

A fonte da juventude


Tudo o que existe neste mundo e é captado por nossos cinco sentidos é perecível. Não importa se é paisagem, barra de gelo ou uma obra de arte, aquilo que é conservado pelas caridosas mãos de alguns homens, é duramente exposto à fúria de outros. Contente-se, aquilo que encanta seus olhos e deleita a sua alma, possui vida breve diante de um tempo que é eterno e vorazmente inconcebível numa mente tão limitada como a nossa.

O tempo é capaz de consumar todas as coisas, a fome excessiva de alguns homens também. Em um país de limites éticos tão frágeis quanto o nosso, não por acaso, vamos perdendo muito daquilo que nos é de direito: a saúde e a paciência em filas intermináveis de hospitais e de bancos; o futuro de nossos jovens em escolas precárias; o pouco dinheiro que possuímos com a carga tributária altíssima que o país é dono. Felizmente até a ambição encontra limites, tanto que existem bens que a corrupção de uns não pode tocar. Por mais que um político desonesto desvie o dinheiro da merenda escolar e da ponte que une um município a outro, ele não pode roubar o que tenho dentro de mim. Aliás, não consegue roubar até o que está fora. A minha juventude, por exemplo, ninguém tira. Um político ladrão (sem maiores ofensas àqueles que usam do habitual expediente de usurpar aquilo que é dos outros) pode vive 150 anos roubando, mas ele nunca roubará um ano de minha vida. Mas sejamos utópicos e concebamos os sonhos que ninguém deseja. Imaginem um mundo em que os políticos desonestos podem roubar tudo, até a juventude das pessoas. Seríamos então um país de jovens, de jovens ladrões. As oligarquias teriam vida eterna, uma vez que permaneceriam para sempre com o frescor de uma juventude roubada. As pessoas honestas teriam cada vez menos oportunidades de protestar, uma vez que a artrite e o reumatismo tirariam toda a vontade de esbravejar contra os desmandos políticos, que seriam muito mais corriqueiros em um país onde os corruptos apenas remoçam. As crianças, ao contrário, receberiam muito mais atenção do que recebem, uma vez que são donas do melhor que a vida tem e já sairiam velhas dos berçários, totalmente sugadas de suas infâncias. Poderia também se fazer tráfico de juventude, exploração não do corpo, mas da menor idade. O pai chegaria mais velho em casa depois de ter trocado cinco anos por um fardo de arroz. Algumas mães poderiam fazer comércio da pouca idade de seus filhos. Seria um país, um grande país e o modelo poderia ser explorado em larga escala e haveria gráficos de desempenho e metas para melhor se roubar os anos alheios. Nós teríamos a fonte da juventude. Nós não, eles, lembrem-se, os que não são corruptos seriam eternamente velhos.

Graças a Deus não jorra água dessa fonte. O que falo aqui não passa de devaneio; conversa fiada para outra crônica de domingo. A desonestidade ainda é um veneno muito poderoso na tarefa de estragar o nosso dia, no entanto – e isso não é utopia, mas a mais pura realidade – somos donos de braços e pernas jovens (uma juventude que não pode ser simplesmente roubada de nós), podemos lutar contra os que desejam roubar qualquer coisa. Só a possibilidade de pensar nisto me faz rejuvenescer uns dez anos.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Panetone


Minha esposa tem verdadeira loucura por panetone. Não importa a época do ano, ela sempre arruma uma desculpa para consumi-lo. Não sou muito fã de seu gênero alimentar, mas reconheço tratar-se de uma paixão genuína. O amor da minha esposa pelos outros às vezes se manifesta materialmente nas coisas que ela gosta, ou seja, se ela gosta muito de alguém, costuma presenteá-lo com aquilo que também gosta. Minha esposa presenteia suas pessoas queridas com panetone. Outro dia ela viu vários no supermercado – encalhados depois das festas natalinas –, motivo suficiente para levá-los aos montes para casa. Quando chegamos, ela resolveu partilhá-los entre algumas vizinhas pelos mais variados motivos e foi um desses motivos que me incentivou a escrever. A minha esposa daria um panetone à uma vizinha porque esta sempre lhe dava um sorriso. A meu ver, uma troca muito justa.

Um sorriso que uma pessoa dá a outra é apenas uma troca de gentilezas, porém é gesto nobre, capaz de fazer toda a diferença para algumas pessoas. É uma pena que a falta de pequenos gestos (que são grandes demonstrações daquilo que podemos dar de melhor) são eclipsados pela dureza dos dias. Carinho, conforto e atenção, mais que substantivos abstratos (conforme aprendemos quando achava-se que a língua não possuía mobilidade) são entes concretos, cuja concretude às vezes também pode se manifestar nos panetones que minha esposa distribui.

Amo muita gente, é por isso que para materializar meus sentimentos, às vezes escrevo algumas palavras. Deve ser esse meu jeito de dar alguns panetones.