domingo, 30 de janeiro de 2011

Ética para lugares pequenos


Na faculdade de filosofia tive um professor de Ética medíocre (cujo nome não revelo, a fim de ofender a sua mediocridade) que me ensinou que etiqueta era uma espécie de pequena ética. Quer dizer, uma ética para espaços reservados. É verdade, neste mundo em que nos falta filosofia, existem maneiras de se agir bem em determinados lugares – e sempre existem os que agem bem e aqueles que não agem tão bem.

Supermercado é um desses lugares em que devia ter na porta um livrinho de condutas. As pessoas se portam mal e não possuem o menor cuidado umas com as outras. É verdade, já vi, por exemplo, um engarrafamento de carrinhos de compras, veja só uma coisa dessas! Os supermercados andam superlotados? Com certeza, a Walmart sabe fazer muito bem os seus negócios, mas o que provoca uma fila de carrinhos são as pessoas que não sabem posicioná-los, geralmente colocando-os bem no meio dos corredores – um pandemônio só, que revela a falta de preocupação com quem está fazendo compras. O supermercado é um microcosmo, porém o que se faz em lugares pequenos se faz também em grandes: quem empilha os corredores com carrinhos de compras; engarrafa o trânsito com seus carros; empata a vida dos outros com suas resoluções. É só conferir para confirmar o que estou falando.

Por falar em falar, falar dos outros é falar mal e é isto que estou fazendo: falando mal. Peço que me perdoem, é um exercício que acabo praticando involuntariamente. Voltando ao assunto da pequena ética, seria bom praticá-la para se dar grandes saltos, já que as grandes mudanças acontecem naqueles pequenos atos de que tanto falo. Não deveria ter chamado meu professor de Ética de medíocre, afinal, conseguiu me ensinar o que era etiqueta. Realmente se peca pelo mínimo.

domingo, 23 de janeiro de 2011

A mulher, os cães, a enchente


Tenho pavor da morte, como quase todo mundo que conheço. Não interessa como ela venha, se for suave e rápida ou lenta e dolorosa, simplesmente não estou preparado para morrer – sempre vou achar que esqueci de fazer algo. Confesso que acho o medo da morte irracional, ela é inevitável, mas ninguém acredita nela nem que um dia ela virá.

O dramático salvamento da mulher presa em sua laje me deu essa exata dimensão de descrença. Vê-la ali, encurralada pela força das águas, buscando uma ilusória proteção ao lado de seus cães de estimação teve um quê de surreal. Seu olhar fitava o vazio, enquanto as águas derrubavam parede por parede de seu frágil abrigo. Era como se ela não pudesse acreditar no que seus olhos viam (assim como eu também, meu Deus, não acreditava); como se a morte, materializada tão agudamente na forma de enxurrada, não tivesse o direito de estar ali reclamando aquelas vidas tão comuns: o quê, uma mulher idosa e uns três ou quatro cães, era isso que a morte reclamava tão insistentemente. Quando a corda caiu em suas mãos e vozes desesperadas gritavam para que ela largasse o animal, a realidade caiu então plausível em sua cabeça, morreria se permanecesse ali. Amarrou-se e num ultimo arroubo de esperança, tentou carregar o animal que lhe cabia nos braços – a motivação de sua escolha era irrelevante, não interessa se era por causa do tamanho ou se era o bicho de sua predileção, ele apenas estava ali, em suas mãos e mesmo que não raciocinasse, como fazem os homens, seu instinto apontava para a mesma coisa que o raciocínio pronto e acabado da mulher: sobreviver.

O resto da imagem foi exibido nos noticiários à exaustão: a mulher, sumindo nas águas sujas com o cão e emergindo destas mesmas águas sem ele, que desaparecido nas ondas, apenas deixou de existir. Braços, pernas e vozes exaltadas a puxaram para um abrigo mais alto, oferecendo de maneira tão corajosa aquilo que ela buscava tão desesperadamente ao enfrentar a enxurrada, a vida. A morte então havia se consumado em mais aquele pedaço de Rio de Janeiro, pelo menos em parte, já que não conseguiu tragar a mulher. A chuva ainda caia, quando a câmera amadora ainda buscou o que restava do abrigo onde estavam a mulher e os cães, e só podia ser uma coisa, coisa alguma, apenas água. Quanto vale a vida nessas horas é um mistério do tamanho da morte: vale um grito no desespero; uma corda esticada no vazio.

domingo, 16 de janeiro de 2011

A cidade de lama




Em vida, seu Ribeiro, meu pai, não soube o que foi ter grandes dificuldades. Mesmo assim, isso não o impediu de ter consciência das vicissitudes inerentes à vida. De todas as reflexões que tecia, e que acabava me revelando em nossa relação de pai e filho, uma fincou raízes em minha mente: a de que todo homem, por mais que sofra na vida (porque viver, sem nenhuma força de eufemismo, neste mundo é sofrer), dentro do seu lar é um rei. Isso para mim sempre foi uma verdade. Até hoje.

Quando assisti ao telejornal pela manhã do dia 12, uma panorâmica em uma cidade do estado do Rio de Janeiro revelou-me algo incrível: os noticiários exibiam uma cidade que era feita de lama e que o lugar onde havia ruas e casas cedera espaço a toneladas de entulho. O que aconteceu em Petrópolis, Teresópolis e Nova Friburgo, fez com que eu me perguntasse quantos reis não haviam sido destronados de uma vez só naqueles lugares. E quando falo em destronados, não me refiro apenas à da perda de seus lares, mas à morte de seus parentes e até sobre a perda da própria dignidade. Porque um homem sem seu lar, impossibilitado de defender sua família, não é coisa alguma.

O que aconteceu no Rio de Janeiro, mais do que uma tragédia anunciada, é a prova de nossa curta memória em relação a esse tipo acontecimento, é aquela incômoda sensação de já vimos isso antes. A lama levou mais do que bens materiais, carregou vidas e sonhos inteiros; matou não apenas as vítimas que morreram, mas também matou aqueles que ainda respiram e que doravante carregarão o remorso por terem vivido mais que seus filhos. Roga-se aos céus para que estes dêem aos homens tempo de reconstruir o pouco que conseguiram ajuntar. Roga-se ao tempo que forneça consolo a todos os órfãos, a todos os viúvos, a todos os pais que não tem mais filhos para consolar. No Brasil acontece um Haiti todo ano. O que é fatalidade proporcionada pela natureza, confunde-se com o descaso e o despreparo, e já não se sabe quem é o responsável por tamanha destruição. Nestas horas em que não sabemos de que pátria somos filhos, a quem se deve recorrer? Bom, as autoridades nessas horas sabem fazer apenas aquilo que estão acostumadas a fazer quando a água enche. Elas estão “boiando”.

domingo, 9 de janeiro de 2011

A fonte da juventude


Tudo o que existe neste mundo e é captado por nossos cinco sentidos é perecível. Não importa se é paisagem, barra de gelo ou uma obra de arte, aquilo que é conservado pelas caridosas mãos de alguns homens, é duramente exposto à fúria de outros. Contente-se, aquilo que encanta seus olhos e deleita a sua alma, possui vida breve diante de um tempo que é eterno e vorazmente inconcebível numa mente tão limitada como a nossa.

O tempo é capaz de consumar todas as coisas, a fome excessiva de alguns homens também. Em um país de limites éticos tão frágeis quanto o nosso, não por acaso, vamos perdendo muito daquilo que nos é de direito: a saúde e a paciência em filas intermináveis de hospitais e de bancos; o futuro de nossos jovens em escolas precárias; o pouco dinheiro que possuímos com a carga tributária altíssima que o país é dono. Felizmente até a ambição encontra limites, tanto que existem bens que a corrupção de uns não pode tocar. Por mais que um político desonesto desvie o dinheiro da merenda escolar e da ponte que une um município a outro, ele não pode roubar o que tenho dentro de mim. Aliás, não consegue roubar até o que está fora. A minha juventude, por exemplo, ninguém tira. Um político ladrão (sem maiores ofensas àqueles que usam do habitual expediente de usurpar aquilo que é dos outros) pode vive 150 anos roubando, mas ele nunca roubará um ano de minha vida. Mas sejamos utópicos e concebamos os sonhos que ninguém deseja. Imaginem um mundo em que os políticos desonestos podem roubar tudo, até a juventude das pessoas. Seríamos então um país de jovens, de jovens ladrões. As oligarquias teriam vida eterna, uma vez que permaneceriam para sempre com o frescor de uma juventude roubada. As pessoas honestas teriam cada vez menos oportunidades de protestar, uma vez que a artrite e o reumatismo tirariam toda a vontade de esbravejar contra os desmandos políticos, que seriam muito mais corriqueiros em um país onde os corruptos apenas remoçam. As crianças, ao contrário, receberiam muito mais atenção do que recebem, uma vez que são donas do melhor que a vida tem e já sairiam velhas dos berçários, totalmente sugadas de suas infâncias. Poderia também se fazer tráfico de juventude, exploração não do corpo, mas da menor idade. O pai chegaria mais velho em casa depois de ter trocado cinco anos por um fardo de arroz. Algumas mães poderiam fazer comércio da pouca idade de seus filhos. Seria um país, um grande país e o modelo poderia ser explorado em larga escala e haveria gráficos de desempenho e metas para melhor se roubar os anos alheios. Nós teríamos a fonte da juventude. Nós não, eles, lembrem-se, os que não são corruptos seriam eternamente velhos.

Graças a Deus não jorra água dessa fonte. O que falo aqui não passa de devaneio; conversa fiada para outra crônica de domingo. A desonestidade ainda é um veneno muito poderoso na tarefa de estragar o nosso dia, no entanto – e isso não é utopia, mas a mais pura realidade – somos donos de braços e pernas jovens (uma juventude que não pode ser simplesmente roubada de nós), podemos lutar contra os que desejam roubar qualquer coisa. Só a possibilidade de pensar nisto me faz rejuvenescer uns dez anos.

domingo, 2 de janeiro de 2011

Panetone


Minha esposa tem verdadeira loucura por panetone. Não importa a época do ano, ela sempre arruma uma desculpa para consumi-lo. Não sou muito fã de seu gênero alimentar, mas reconheço tratar-se de uma paixão genuína. O amor da minha esposa pelos outros às vezes se manifesta materialmente nas coisas que ela gosta, ou seja, se ela gosta muito de alguém, costuma presenteá-lo com aquilo que também gosta. Minha esposa presenteia suas pessoas queridas com panetone. Outro dia ela viu vários no supermercado – encalhados depois das festas natalinas –, motivo suficiente para levá-los aos montes para casa. Quando chegamos, ela resolveu partilhá-los entre algumas vizinhas pelos mais variados motivos e foi um desses motivos que me incentivou a escrever. A minha esposa daria um panetone à uma vizinha porque esta sempre lhe dava um sorriso. A meu ver, uma troca muito justa.

Um sorriso que uma pessoa dá a outra é apenas uma troca de gentilezas, porém é gesto nobre, capaz de fazer toda a diferença para algumas pessoas. É uma pena que a falta de pequenos gestos (que são grandes demonstrações daquilo que podemos dar de melhor) são eclipsados pela dureza dos dias. Carinho, conforto e atenção, mais que substantivos abstratos (conforme aprendemos quando achava-se que a língua não possuía mobilidade) são entes concretos, cuja concretude às vezes também pode se manifestar nos panetones que minha esposa distribui.

Amo muita gente, é por isso que para materializar meus sentimentos, às vezes escrevo algumas palavras. Deve ser esse meu jeito de dar alguns panetones.