segunda-feira, 24 de março de 2014

A volta do pior


Hoje, apenas passando a vista em um portal de notícias, vi uma que era no mínimo curiosa e pode ser que na verdade seja até preocupante. No sábado, na cidade de São Paulo, cerca de mil pessoas se reuniram para uma reedição da "Marcha da Família com Deus pela Liberdade". Sim, aquela mesma ocorrida cinquenta anos atrás em favor do golpe dos militares. Não dá para levar muito a sério um bando de católicos nervosos e umas tantas donas de casa reacionárias (acho que os tais "Black Bloc's" com seu vandalismo e suas toucas ninjas chamam mais atenção dos noticiários), mas fico pensando, se existe um número de pessoas, ainda que insignificante, exigindo o retorno dos tempos mais obscuros deste país, é sinal de que as coisas andam muito, mais muito erradas mesmo.

Não vou perder meu tempo falando mal do PT, até mesmo porque é impossível achar um espaço para manchar a sua imagem, mas convenhamos que muita gente já está começando a se cansar com os absurdos que esse partido nos vem empurrado goela abaixo faz mais de uma década. A lista recente incluem a copa do mundo, as olimpíadas, os embargos infringentes do mensalão, o apoio dispensado a regimes ditatoriais como os de Cuba e Venezuela e todas essas coisinhas escandalosas que todos já estão carecas de saber. Na outra ponta os velhos problemas que, para alguns, ainda são culpa das gestões "elitistas" do passado: educação falida, saúde em estado terminal, descaso social, insegurança e por aí vai.

Quando pessoas pedem a volta do pior é porque não existe esperança em lugar algum, mas uma coisa os generais me ensinaram, o pior dos políticos ainda é melhor que o melhor dos generais. Também não vou falar nada sobre ditaduras, qualquer um que tenha um mínimo de inteligência sabe o que elas significam; assim como não falarei das pessoas que participaram da tal marcha, é que não costumo escrever palavrão. Uma coisa positiva posso tirar disso tudo, é bom que esses nossos governantes abram os olhos, porque se hoje alguém lá em São Paulo pede a volta do pior, pode ser que um dia alguém cometa a loucura de pedir o melhor também. Aí já imaginou como vai ser?

Detesto falar de política. Política é chato e o texto não flui, não fica bonito. Prefiro falar das crianças, das borboletas e do vento. Sinceramente, às vezes perco meu tempo com cada besteira.

domingo, 16 de março de 2014

Amor


Ela sempre se queixou da falta de carinhos do marido, que imbuído de suas coisas praticas, que nos dizeres dele próprio eram sustentar a família e pagar as contas, apenas para citar como exemplo, nunca havia destinado a ela certos afagos.


Aí veio o câncer.

O caroço abaixo da axila chamou sua atenção, mas não parecia ser anúncio de qualquer coisa mais séria. É que às vezes a gente dá pouca importância para os pequenos sinais de enfermidade que o corpo expressa. Depois disso é que vieram os demais sintomas: a vermelhidão pelo corpo, a pele enrugada, a ferida que se abriu em sua mama direita.

Como deveria ser, a família acercou-se dela - até mesmo o marido que meio receoso, meio arrependido, ressentiu-se do amor não materializado.

Assim ela foi levando sua nova condição, fazendo exames de todos os tipos, tratamentos quimioterápicos, a extirpação da mama afetada - que nada significou diante de um câncer metastático -, crises que davam vontade de morrer logo. O marido ficava na cabeceira da cama, atento, afagando-lhe a testa suada. Ali foi redescoberto pela esposa, que enfim pode perceber que não era um caso de falta de amor, mas aquelas estranhas relações que se estabelecem depois de muitos anos de casados, estranhas relações que impedem de dizer eu amo você para a pessoa amada. 

Certo dia o encarou no fundo dos olhos e palavras não precisavam ser ditas. Ele a percebeu na cama e tudo que existia ao redor dela, o quarto, os corredores, os outros doentes que também sofriam, e até mesmo o hospital inteiro não passavam de um pano de fundo negro, alheio à história de vida deles.

Eu amo você, ele disse, sentindo o concreto de anos quebrar de sua boca muda de palavras.

Eu sei, ela respondeu. Eu sempre soube.

Ela morreu duas semanas depois. 

A cerimônia fúnebre não teve nada demais e essas ocasiões não precisam disso mesmo, afinal, as despedidas ocorrem antes das pessoas partirem. O marido, agora vestido de viuvez, não tinha a menos vontade de estar ali, apertando mãos, recebendo tapinhas nas costas. O que ele queria era pegar o carro e dirigir até a gasolina a gasolina acabar, poderia também entrar em um bar e beber até perder a consciência ou quem sabe até mesmo cavar um buraco bem fundo e enfiar-se nele para ser esquecido por todo mundo. Entretanto não podia fazer nada daquilo, deveria permanecer enlutado dentro de uma tradição que já nem se questiona mais.

A terra caiu sobre o caixão e tudo acabou. Simples assim.

Ainda levaria muitos anos para que ele também morresse. Nesse intervalo, é lógico, a vida seguiu seu curso, com seus filhos dando-lhe netos e o tempo dando-lhe rugas e reumatismos. Tornou-se um velho recluso, mas não antissocial, apenas gostava do silêncio e da lembrança. Ainda lembrava do quarto de hospital em que esteve com sua falecida esposa, sua boca dizendo que a amava e tudo parecia ter acontecido no dia anterior, mesmo que tempo negasse tudo.

Quando finalmente pode morrer em paz com sua consciência, não temeu a morte, porque imaginou que talvez ela nem existisse. Pensou na esposa e de como era curioso que o amor, um sentimento tão melhor descritos pelos poetas, fosse tão latente em um homem rude como ele. Eu amo você, disse enquanto segurava a mão de um de seus filhos à cabeceira de sua cama de hospital - por sinal o mesmo em que ela falecera, mas não era a mão de seu filho que buscava e sim a de alguém que partira muito tempo antes dele. Eu também amo você, pai e o filho sentia que o pai morreria ali, naquele instante.

O velho homem olhou de lado, na direção da janela e estava um dia lindo lá fora. Também estava um dia lindo dentro dele.

Fechou os olhos e morreu.

sexta-feira, 7 de março de 2014

O bicho




O bicho


Vi ontem um bicho
Na imundice do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.




O poema "O bicho", de Manuel Bandeira é uma das pérolas mais finas e caras da recente literatura brasileira. Fina porque é uma construção literária magnífica, que só podia ser produzida por um grande artista como ele. Cara porque usando o lirismo revela as grandes misérias deste país que chamam de Brasil.

Esse poema mexeu comigo na juventude e estremeci ao constatar que a criatura que vasculhava os detritos, que sequer cheirava o que comia era um homem. Mas na época eu nada podia fazer, não era mais que um garoto e aquilo estava além de minhas condições. O tempo passou, amadureci e virei um homem. As imagens que chocaram tanto a minha imaginação sumiram de minha cabeça.

Um dia desses, andando pelas ruas de minha São Luís, vi outra vez o bicho, mas ele não estava nas palavras de um poema, ele estava na minha frente, diante de meus olhos. Vi um homem curvado que nem bicho faminto, vasculhando o lixo furiosamente e em um bandeco usado e sujo, depositava tudo o que achava e fazia para si uma refeição bizarra. O que causaria repulsa na maioria das pessoas era o que atenuaria mais um de seus dias de miséria. De repente me senti o garoto que havia lido o poema anos atrás e mais uma vez não podia fazer nada, porque não era a comida que lhe faltava, era a própria dignidade. Nessas horas existem aqueles que dizem que Deus não existe e é verdade, para eles não existe mesmo, mas aí Deus é apenas um conceito e nem é o mais caro dessa história. O conceito que nos abala e nos aflige é o nosso conceito de humanidade. O que é a humanidade em um momento como este? Nada. Porque o homem que vi não era um humano, sequer era um bicho. Os bichos estão integrados à natureza bruta e se os vemos buscando alimento em meio ao lixo é porque estão deslocados de seus habitat. Entretanto, o homem que vi não estava deslocado, estava entre outros homens e ainda assim comia lixo, mas a sua fome não era de comida, a sua fome era de ser homem, era fome de deixar de ser bicho. É nesse momento que a humanidade não é um conceito, uma palavra para ser dita por bocas cheias de dentes. A humanidade não existe.


São Luís, 20 de fevereiro de 2014.