domingo, 18 de outubro de 2015

Ausência



Fazia anos que não se viam, uns catorze mais ou menos. Naturalmente o tempo agiu em ambos, mudando suas aparências, tornando-os mais experientes. Ele adquiriu o hábito de desconfiar de todo mundo; ela, de tão pessimista, vestiu-se com uma capa de tristeza. Encontraram-se em uma rua movimentada e quase não se reconheceram de tão acostumados que estavam à ideia de nunca mais se verem.

Para quem já passou dos trinta, catorze anos de ausência não fazem tanta diferença na vida de alguém, na maioria das vezes quase todo mundo é definitivo nessa idade; o tempo torna mais velho, mas é incapaz de mudar a personalidade de quem quer que seja. Entretanto, existe um período da vida em que se é uma página em branco, nessa fase, as experiências vividas em um único dia deixam marcas indeléveis na alma. O período do qual se fala é aquele elo perdido da existência de todos, em que não se é criança nem adulto; que vai dos quinze aos vinte e cinco, onde tudo é marcante e é capaz de por a vida toda em perspectiva, modificando-a totalmente. Foi nessa fase confusa em que se conheceram, ele com dezessete, ela, um pouco mais velha que ele, com vinte e um. Viveram uma dessas muitas paixões arrebatadoras que se veem por ai; o clichê típico da idade, rito de passagem obrigatório do fim da adolescência para o início da vida adulta. Namoraram por quase dois anos. Dividiram dúvidas, anseios, sensações, sonhos e tão forte como tudo começou, repentinamente desapareceu. Firmaram uma certa amizade, mas depois cada um foi para o seu canto e nunca mais se viram.

Anos mais tarde, sem saber ao certo o que queria de fato, a separação pareceu para ele uma coisa boba e resolveu procurá-la entre parentes e conhecidos dela, obtendo a informação de que viajara fazia três anos para o exterior e que nunca deixara um endereço ou telefone fixo, mudando periodicamente de lugar. A princípio sentiu-se meio bobo por tê-la procurado em vão, depois, ficou sentido com a falta de consideração dela, que foi incapaz de avisá-lo, ainda que não tivesse obrigação nenhuma de fazê-lo.

Quando ela resolveu sair do país, buscava outros ares e quem sabe a chance de ser feliz também. Achava que até então a vida tinha sido uma burrada só, uma desilusão atrás da outra, porque era muito difícil buscar um entendimento da vida e vivê-la ao mesmo tempo. Pensava muito no passado e arrependida de certas coisas, achava que às vezes a única coisa boa que o passado podia oferecer era a possibilidade de esquecê-lo. No saguão do aeroporto, à espera do avião que a levaria para outra vida, pensou nele, seu antigo namorado, e era uma lembrança gostosa, tipo um dia de chuva. Associação estranha, ela pensou. Fazer o quê, talvez não fosse para dar certo mesmo.
                
Quem sabe tenham continuado juntos em uma realidade paralela e quem sabe, de quebra, tenham sido felizes, mas o mundo é o aqui e agora, o resto especula-se. Ele terminou a faculdade, arranjou um emprego na área; casou-se, não deu certo, separou-se. Ela percebeu que era muito fácil trocar de país, de cultura e indo de um lugar para o outro no mundo, descobriu que a única coisa que diferenciava um ser humano de outro era apenas a língua e isso era frustrante; por fim, assim como ele, divorciou-se, só que do mundo todo.
                
Então lá estavam eles de novo, juntos, depois de catorze anos. Impressionavam-se como o tempo os tornou diferentes, um salto tão profundo que os converteu, repentinamente em dois adultos. Ele a convidou para um café, ela disse que estava com pressa, era apenas um café, ele insistiu.

Sentaram no café meio constrangidos, sem ter muito o que falar para o outro, é verdade, mas pouco tempo depois conversavam razoavelmente. Falaram amenidades; comentaram, espantados, as mudanças do mundo em tão pouco tempo. Ele falou da época da faculdade, de sua procura por ela, do trabalho e do divórcio recente – deixando muito clara a impossibilidade de resgatar seu casamento. Ela falou de suas andanças pelo mundo, de sua freqüente curiosidade em conhecer as coisas, de sua imensa frustração em achar tudo ordinário e de sua impossibilidade em prender-se a alguém. Em algum ponto da conversa, falou-se do passado e de como certos acontecimentos graves, catorze anos depois, ficavam mais amenos e até mesmo engraçados. De repente ele deixou escapar que pensava muito neles dois e que não podia deixar de imaginar que a vida poderia ter sido outra para eles. Mesmo acreditando em seu íntimo que nem todos haviam nascido para aquilo, concordou com as palavras dele e ficaram em silêncio. Na verdade, ele disse alguns minutos depois, não lembro por que nos separamos. Eu também não, ela disse.

Antes de se despedirem, perguntou se ela estava morando na cidade. Ela disse que não, que estava lá só para resolver uns problemas jurídicos que surgiram com a recente morte do pai e que em breve cairia no mundo outra vez. Ele lamentou duplamente, a morte do pai dela e sua inevitável partida. Trocaram telefones e um abraço canhestro e foi naquele curto contato, no momento em que se viram nos olhos, que sentiram uma energia que emanava de ambos, um certo quê de algo que estava inacabado.
                
Ele a observou afastar-se, querendo que ela permanecesse, mas sem achar as palavras certas que fossem capazes de convencê-la. Fosse o que fosse, curiosidade ou esperança, vê-la partir dava a impressão de que jogara fora os últimos catorze anos.

                
Ela misturou-se à multidão e desapareceu rapidamente, uma habilidade desenvolvida após anos de uma intensa fuga de tudo.  Voltou a sentir aquele medo danado que tinha da felicidade e fugia antes de arrepender-se por ter dado um número errado de telefone ao seu antigo namorado.

domingo, 4 de outubro de 2015

Crônica de um dia sem televisão fechada



Estou sem televisão por assinatura e estou sentindo uma falta danada porque tenho um ótimo pacote de canais. Por alguma causa natural – pode ter sido uma ventania muito forte que deu por aqui – ou até mesmo incompetência do técnico que fez a instalação, minha antena caiu e fiquei sem sinal.

O que fazer enquanto o técnico não chega?

Como tenho pouquíssimas opções na televisão convencional – aqui em casa só pegam dois canais – recorri à minha velha coleção de DVD’s, que andava em baixa por causa da tal televisão fechada. Para dizer a verdade, ainda não migrei para o formato Blu-Ray justamente pela comodidade de ter tantos filmes à disposição nos muitos canais oferecidos. De repente percebi o quanto fiquei acomodado e preguiçoso nesse quesito. Logo eu, que um dia tive uma enorme coleção de fitas VHS. As pessoas que estiverem abaixo da casa dos 30 anos, sintam-se desobrigadas em ler este texto, definitivamente isto aqui não é da época de vocês.

Voltando ao assunto, fiquei observando meus DVD’s, buscando um título que me interessasse e ai bateu uma saudade dos anos de 80 e 90, porque lembrei que naquelas décadas não havia DVD e o boom das locadoras – que nem sonhavam com pirataria digital – era alimentado por aquelas fitas cassete enormes que levávamos para casa sob a ameaçadora advertência de rebobiná-las antes de devolver. Bons tempos aqueles. Tudo era diferente. O cinema era outro, a música era outra, a vida era outra. No ar havia menos malícia e mais fantasia. Já disseram que nasci com uma cabeça velha demais, que falo muito do que passou. É verdade, falo muito do passado, até mesmo porque é só dele que posso falar com conhecimento de causa, pois o futuro ainda virá e o presente deixa de sê-lo no instante seguinte. Resta-me então o tempo que passou e as lembranças deixadas por ele.

Muita coisa, além do VHS, ficou para trás.  Eu mesmo já deixei de contabilizar perdas e ganhos, simplesmente deixo acontecer. Novas gerações sucederam a minha e outras deixaram de falar comigo por já terem ido embora. Alguns de meus heróis ainda estão por ai, me defendendo; outros viraram bandidos e cumprem as penas dos crimes que antigamente combatiam. Máquinas de escrever – que me serviram tanto na faculdade – são peças de museu. A música perdeu a forma física, ela agora é digital, onipresente. O que me espanta é o preço dos vinis, caros por serem raros. Os tempos mudaram e as pessoas que agora estão conectadas às redes sociais, nunca estiveram tão longe de si mesmas. Porém, não posso negar que muito melhorou, posso oferecer mais do que meus pais podiam me oferecer; todo mundo pode – dentro do limite legal – falar o que pensa; a tecnologia já nem é mais tão restrita; e a medicina só avança.

Deixei de procurar um DVD, o filme poderia ficar para depois, preferi ligar para a minha mãe e saber como ela estava.