terça-feira, 3 de setembro de 2019

Perguntas


Para muitos curiosidade é defeito, desvio de personalidade, falta de caráter. Para mim é qualidade e que – modéstia à parte – tenho em profusão. Sempre foi assim e enquanto tiver gana em conhecer algo, assim será. Desde criança sou deste jeito, cheio de perguntas e com elas vivia construindo meus castelos. Mamãe, coitada, era o meu maior oráculo – e digo isso porque para responder algumas perguntas, só com intervenção de Apolo mesmo. Perguntava o que desse na telha. O nome das coisas. Das plantas, dos bichos e quanto viviam. Quantas estrelas cabiam no céu? Quem fazia o barulho gozado das conchas, quando a gente as levava ao ouvido? Para encher o oceano, precisaria de quantos litros d’água? Vovô foi embora para onde, que não quis nem me conhecer? Algumas ela respondia. Outras, ausentes de lógica minha ou falta de conhecimento dela, simplesmente, pela mais vertiginosa tangente, fugia. Você pergunta demais, menino, dizia.


Meu filho, aos sete anos, também é muito curioso – e confesso, por grande ironia da coisa toda, muito mais que eu. Hoje me supera as perguntas, daqui a pouco a altura, amanhã, por fim, o conhecimento e seguindo o ciclo, se verá obrigado a prestar atenção ao que perguntarão meus netos. Ele é curioso, muito curioso. Você pergunta demais, menino, digo e percebo que sou dotado dos mesmos escapismos ancestrais de minha mãe.

Em outros países, crianças em outras línguas que nem conheço, devem fazer aos seus pais as mesmas perguntas que fazia a minha mãe e – por causa do ciclo que falei há pouco – uma vez que se tornarem adultos, naquela fase em que cansamos de perguntar e pretensiosamente – ainda que se saiba que nada de essencial foi respondido – tentamos nos apoiar na frágil muleta do conformismo. Entretanto, sempre haverá uma criança, que é filho de alguém que também foi filho, que perguntará: mãe, o que é aquilo? Dá para fazer diferente? Eis me aqui, um corpo de homem que se assenta em pés de menino, questionando. De repente meu filho, furacão de duas pernas, indiferente ao meu silêncio e gravidade, faz de meus papeis e concentração hecatombe – fenômeno que faz de um jeito todo dele. Interrompe o cataclismo e pergunta o que faço sentado atrás de minha mesa. Não sei, filho, respondo sinceramente ao me levantar, deixando de lado o que nem sabia mais estar fazendo. Vou onde ele está me debruçando sobre seus olhos e me vejo nele, mais de trinta anos remoçado: baixinho, magro e com um olhar curioso que se sustenta em cima de dois joelhos ossudos. Não dá para fazer diferente. Ainda bem que não dá para fazer diferente.




domingo, 18 de outubro de 2015

Ausência



Fazia anos que não se viam, uns catorze mais ou menos. Naturalmente o tempo agiu em ambos, mudando suas aparências, tornando-os mais experientes. Ele adquiriu o hábito de desconfiar de todo mundo; ela, de tão pessimista, vestiu-se com uma capa de tristeza. Encontraram-se em uma rua movimentada e quase não se reconheceram de tão acostumados que estavam à ideia de nunca mais se verem.

Para quem já passou dos trinta, catorze anos de ausência não fazem tanta diferença na vida de alguém, na maioria das vezes quase todo mundo é definitivo nessa idade; o tempo torna mais velho, mas é incapaz de mudar a personalidade de quem quer que seja. Entretanto, existe um período da vida em que se é uma página em branco, nessa fase, as experiências vividas em um único dia deixam marcas indeléveis na alma. O período do qual se fala é aquele elo perdido da existência de todos, em que não se é criança nem adulto; que vai dos quinze aos vinte e cinco, onde tudo é marcante e é capaz de por a vida toda em perspectiva, modificando-a totalmente. Foi nessa fase confusa em que se conheceram, ele com dezessete, ela, um pouco mais velha que ele, com vinte e um. Viveram uma dessas muitas paixões arrebatadoras que se veem por ai; o clichê típico da idade, rito de passagem obrigatório do fim da adolescência para o início da vida adulta. Namoraram por quase dois anos. Dividiram dúvidas, anseios, sensações, sonhos e tão forte como tudo começou, repentinamente desapareceu. Firmaram uma certa amizade, mas depois cada um foi para o seu canto e nunca mais se viram.

Anos mais tarde, sem saber ao certo o que queria de fato, a separação pareceu para ele uma coisa boba e resolveu procurá-la entre parentes e conhecidos dela, obtendo a informação de que viajara fazia três anos para o exterior e que nunca deixara um endereço ou telefone fixo, mudando periodicamente de lugar. A princípio sentiu-se meio bobo por tê-la procurado em vão, depois, ficou sentido com a falta de consideração dela, que foi incapaz de avisá-lo, ainda que não tivesse obrigação nenhuma de fazê-lo.

Quando ela resolveu sair do país, buscava outros ares e quem sabe a chance de ser feliz também. Achava que até então a vida tinha sido uma burrada só, uma desilusão atrás da outra, porque era muito difícil buscar um entendimento da vida e vivê-la ao mesmo tempo. Pensava muito no passado e arrependida de certas coisas, achava que às vezes a única coisa boa que o passado podia oferecer era a possibilidade de esquecê-lo. No saguão do aeroporto, à espera do avião que a levaria para outra vida, pensou nele, seu antigo namorado, e era uma lembrança gostosa, tipo um dia de chuva. Associação estranha, ela pensou. Fazer o quê, talvez não fosse para dar certo mesmo.
                
Quem sabe tenham continuado juntos em uma realidade paralela e quem sabe, de quebra, tenham sido felizes, mas o mundo é o aqui e agora, o resto especula-se. Ele terminou a faculdade, arranjou um emprego na área; casou-se, não deu certo, separou-se. Ela percebeu que era muito fácil trocar de país, de cultura e indo de um lugar para o outro no mundo, descobriu que a única coisa que diferenciava um ser humano de outro era apenas a língua e isso era frustrante; por fim, assim como ele, divorciou-se, só que do mundo todo.
                
Então lá estavam eles de novo, juntos, depois de catorze anos. Impressionavam-se como o tempo os tornou diferentes, um salto tão profundo que os converteu, repentinamente em dois adultos. Ele a convidou para um café, ela disse que estava com pressa, era apenas um café, ele insistiu.

Sentaram no café meio constrangidos, sem ter muito o que falar para o outro, é verdade, mas pouco tempo depois conversavam razoavelmente. Falaram amenidades; comentaram, espantados, as mudanças do mundo em tão pouco tempo. Ele falou da época da faculdade, de sua procura por ela, do trabalho e do divórcio recente – deixando muito clara a impossibilidade de resgatar seu casamento. Ela falou de suas andanças pelo mundo, de sua freqüente curiosidade em conhecer as coisas, de sua imensa frustração em achar tudo ordinário e de sua impossibilidade em prender-se a alguém. Em algum ponto da conversa, falou-se do passado e de como certos acontecimentos graves, catorze anos depois, ficavam mais amenos e até mesmo engraçados. De repente ele deixou escapar que pensava muito neles dois e que não podia deixar de imaginar que a vida poderia ter sido outra para eles. Mesmo acreditando em seu íntimo que nem todos haviam nascido para aquilo, concordou com as palavras dele e ficaram em silêncio. Na verdade, ele disse alguns minutos depois, não lembro por que nos separamos. Eu também não, ela disse.

Antes de se despedirem, perguntou se ela estava morando na cidade. Ela disse que não, que estava lá só para resolver uns problemas jurídicos que surgiram com a recente morte do pai e que em breve cairia no mundo outra vez. Ele lamentou duplamente, a morte do pai dela e sua inevitável partida. Trocaram telefones e um abraço canhestro e foi naquele curto contato, no momento em que se viram nos olhos, que sentiram uma energia que emanava de ambos, um certo quê de algo que estava inacabado.
                
Ele a observou afastar-se, querendo que ela permanecesse, mas sem achar as palavras certas que fossem capazes de convencê-la. Fosse o que fosse, curiosidade ou esperança, vê-la partir dava a impressão de que jogara fora os últimos catorze anos.

                
Ela misturou-se à multidão e desapareceu rapidamente, uma habilidade desenvolvida após anos de uma intensa fuga de tudo.  Voltou a sentir aquele medo danado que tinha da felicidade e fugia antes de arrepender-se por ter dado um número errado de telefone ao seu antigo namorado.

domingo, 4 de outubro de 2015

Crônica de um dia sem televisão fechada



Estou sem televisão por assinatura e estou sentindo uma falta danada porque tenho um ótimo pacote de canais. Por alguma causa natural – pode ter sido uma ventania muito forte que deu por aqui – ou até mesmo incompetência do técnico que fez a instalação, minha antena caiu e fiquei sem sinal.

O que fazer enquanto o técnico não chega?

Como tenho pouquíssimas opções na televisão convencional – aqui em casa só pegam dois canais – recorri à minha velha coleção de DVD’s, que andava em baixa por causa da tal televisão fechada. Para dizer a verdade, ainda não migrei para o formato Blu-Ray justamente pela comodidade de ter tantos filmes à disposição nos muitos canais oferecidos. De repente percebi o quanto fiquei acomodado e preguiçoso nesse quesito. Logo eu, que um dia tive uma enorme coleção de fitas VHS. As pessoas que estiverem abaixo da casa dos 30 anos, sintam-se desobrigadas em ler este texto, definitivamente isto aqui não é da época de vocês.

Voltando ao assunto, fiquei observando meus DVD’s, buscando um título que me interessasse e ai bateu uma saudade dos anos de 80 e 90, porque lembrei que naquelas décadas não havia DVD e o boom das locadoras – que nem sonhavam com pirataria digital – era alimentado por aquelas fitas cassete enormes que levávamos para casa sob a ameaçadora advertência de rebobiná-las antes de devolver. Bons tempos aqueles. Tudo era diferente. O cinema era outro, a música era outra, a vida era outra. No ar havia menos malícia e mais fantasia. Já disseram que nasci com uma cabeça velha demais, que falo muito do que passou. É verdade, falo muito do passado, até mesmo porque é só dele que posso falar com conhecimento de causa, pois o futuro ainda virá e o presente deixa de sê-lo no instante seguinte. Resta-me então o tempo que passou e as lembranças deixadas por ele.

Muita coisa, além do VHS, ficou para trás.  Eu mesmo já deixei de contabilizar perdas e ganhos, simplesmente deixo acontecer. Novas gerações sucederam a minha e outras deixaram de falar comigo por já terem ido embora. Alguns de meus heróis ainda estão por ai, me defendendo; outros viraram bandidos e cumprem as penas dos crimes que antigamente combatiam. Máquinas de escrever – que me serviram tanto na faculdade – são peças de museu. A música perdeu a forma física, ela agora é digital, onipresente. O que me espanta é o preço dos vinis, caros por serem raros. Os tempos mudaram e as pessoas que agora estão conectadas às redes sociais, nunca estiveram tão longe de si mesmas. Porém, não posso negar que muito melhorou, posso oferecer mais do que meus pais podiam me oferecer; todo mundo pode – dentro do limite legal – falar o que pensa; a tecnologia já nem é mais tão restrita; e a medicina só avança.

Deixei de procurar um DVD, o filme poderia ficar para depois, preferi ligar para a minha mãe e saber como ela estava.

segunda-feira, 24 de março de 2014

A volta do pior


Hoje, apenas passando a vista em um portal de notícias, vi uma que era no mínimo curiosa e pode ser que na verdade seja até preocupante. No sábado, na cidade de São Paulo, cerca de mil pessoas se reuniram para uma reedição da "Marcha da Família com Deus pela Liberdade". Sim, aquela mesma ocorrida cinquenta anos atrás em favor do golpe dos militares. Não dá para levar muito a sério um bando de católicos nervosos e umas tantas donas de casa reacionárias (acho que os tais "Black Bloc's" com seu vandalismo e suas toucas ninjas chamam mais atenção dos noticiários), mas fico pensando, se existe um número de pessoas, ainda que insignificante, exigindo o retorno dos tempos mais obscuros deste país, é sinal de que as coisas andam muito, mais muito erradas mesmo.

Não vou perder meu tempo falando mal do PT, até mesmo porque é impossível achar um espaço para manchar a sua imagem, mas convenhamos que muita gente já está começando a se cansar com os absurdos que esse partido nos vem empurrado goela abaixo faz mais de uma década. A lista recente incluem a copa do mundo, as olimpíadas, os embargos infringentes do mensalão, o apoio dispensado a regimes ditatoriais como os de Cuba e Venezuela e todas essas coisinhas escandalosas que todos já estão carecas de saber. Na outra ponta os velhos problemas que, para alguns, ainda são culpa das gestões "elitistas" do passado: educação falida, saúde em estado terminal, descaso social, insegurança e por aí vai.

Quando pessoas pedem a volta do pior é porque não existe esperança em lugar algum, mas uma coisa os generais me ensinaram, o pior dos políticos ainda é melhor que o melhor dos generais. Também não vou falar nada sobre ditaduras, qualquer um que tenha um mínimo de inteligência sabe o que elas significam; assim como não falarei das pessoas que participaram da tal marcha, é que não costumo escrever palavrão. Uma coisa positiva posso tirar disso tudo, é bom que esses nossos governantes abram os olhos, porque se hoje alguém lá em São Paulo pede a volta do pior, pode ser que um dia alguém cometa a loucura de pedir o melhor também. Aí já imaginou como vai ser?

Detesto falar de política. Política é chato e o texto não flui, não fica bonito. Prefiro falar das crianças, das borboletas e do vento. Sinceramente, às vezes perco meu tempo com cada besteira.

domingo, 16 de março de 2014

Amor


Ela sempre se queixou da falta de carinhos do marido, que imbuído de suas coisas praticas, que nos dizeres dele próprio eram sustentar a família e pagar as contas, apenas para citar como exemplo, nunca havia destinado a ela certos afagos.


Aí veio o câncer.

O caroço abaixo da axila chamou sua atenção, mas não parecia ser anúncio de qualquer coisa mais séria. É que às vezes a gente dá pouca importância para os pequenos sinais de enfermidade que o corpo expressa. Depois disso é que vieram os demais sintomas: a vermelhidão pelo corpo, a pele enrugada, a ferida que se abriu em sua mama direita.

Como deveria ser, a família acercou-se dela - até mesmo o marido que meio receoso, meio arrependido, ressentiu-se do amor não materializado.

Assim ela foi levando sua nova condição, fazendo exames de todos os tipos, tratamentos quimioterápicos, a extirpação da mama afetada - que nada significou diante de um câncer metastático -, crises que davam vontade de morrer logo. O marido ficava na cabeceira da cama, atento, afagando-lhe a testa suada. Ali foi redescoberto pela esposa, que enfim pode perceber que não era um caso de falta de amor, mas aquelas estranhas relações que se estabelecem depois de muitos anos de casados, estranhas relações que impedem de dizer eu amo você para a pessoa amada. 

Certo dia o encarou no fundo dos olhos e palavras não precisavam ser ditas. Ele a percebeu na cama e tudo que existia ao redor dela, o quarto, os corredores, os outros doentes que também sofriam, e até mesmo o hospital inteiro não passavam de um pano de fundo negro, alheio à história de vida deles.

Eu amo você, ele disse, sentindo o concreto de anos quebrar de sua boca muda de palavras.

Eu sei, ela respondeu. Eu sempre soube.

Ela morreu duas semanas depois. 

A cerimônia fúnebre não teve nada demais e essas ocasiões não precisam disso mesmo, afinal, as despedidas ocorrem antes das pessoas partirem. O marido, agora vestido de viuvez, não tinha a menos vontade de estar ali, apertando mãos, recebendo tapinhas nas costas. O que ele queria era pegar o carro e dirigir até a gasolina a gasolina acabar, poderia também entrar em um bar e beber até perder a consciência ou quem sabe até mesmo cavar um buraco bem fundo e enfiar-se nele para ser esquecido por todo mundo. Entretanto não podia fazer nada daquilo, deveria permanecer enlutado dentro de uma tradição que já nem se questiona mais.

A terra caiu sobre o caixão e tudo acabou. Simples assim.

Ainda levaria muitos anos para que ele também morresse. Nesse intervalo, é lógico, a vida seguiu seu curso, com seus filhos dando-lhe netos e o tempo dando-lhe rugas e reumatismos. Tornou-se um velho recluso, mas não antissocial, apenas gostava do silêncio e da lembrança. Ainda lembrava do quarto de hospital em que esteve com sua falecida esposa, sua boca dizendo que a amava e tudo parecia ter acontecido no dia anterior, mesmo que tempo negasse tudo.

Quando finalmente pode morrer em paz com sua consciência, não temeu a morte, porque imaginou que talvez ela nem existisse. Pensou na esposa e de como era curioso que o amor, um sentimento tão melhor descritos pelos poetas, fosse tão latente em um homem rude como ele. Eu amo você, disse enquanto segurava a mão de um de seus filhos à cabeceira de sua cama de hospital - por sinal o mesmo em que ela falecera, mas não era a mão de seu filho que buscava e sim a de alguém que partira muito tempo antes dele. Eu também amo você, pai e o filho sentia que o pai morreria ali, naquele instante.

O velho homem olhou de lado, na direção da janela e estava um dia lindo lá fora. Também estava um dia lindo dentro dele.

Fechou os olhos e morreu.

sexta-feira, 7 de março de 2014

O bicho




O bicho


Vi ontem um bicho
Na imundice do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.




O poema "O bicho", de Manuel Bandeira é uma das pérolas mais finas e caras da recente literatura brasileira. Fina porque é uma construção literária magnífica, que só podia ser produzida por um grande artista como ele. Cara porque usando o lirismo revela as grandes misérias deste país que chamam de Brasil.

Esse poema mexeu comigo na juventude e estremeci ao constatar que a criatura que vasculhava os detritos, que sequer cheirava o que comia era um homem. Mas na época eu nada podia fazer, não era mais que um garoto e aquilo estava além de minhas condições. O tempo passou, amadureci e virei um homem. As imagens que chocaram tanto a minha imaginação sumiram de minha cabeça.

Um dia desses, andando pelas ruas de minha São Luís, vi outra vez o bicho, mas ele não estava nas palavras de um poema, ele estava na minha frente, diante de meus olhos. Vi um homem curvado que nem bicho faminto, vasculhando o lixo furiosamente e em um bandeco usado e sujo, depositava tudo o que achava e fazia para si uma refeição bizarra. O que causaria repulsa na maioria das pessoas era o que atenuaria mais um de seus dias de miséria. De repente me senti o garoto que havia lido o poema anos atrás e mais uma vez não podia fazer nada, porque não era a comida que lhe faltava, era a própria dignidade. Nessas horas existem aqueles que dizem que Deus não existe e é verdade, para eles não existe mesmo, mas aí Deus é apenas um conceito e nem é o mais caro dessa história. O conceito que nos abala e nos aflige é o nosso conceito de humanidade. O que é a humanidade em um momento como este? Nada. Porque o homem que vi não era um humano, sequer era um bicho. Os bichos estão integrados à natureza bruta e se os vemos buscando alimento em meio ao lixo é porque estão deslocados de seus habitat. Entretanto, o homem que vi não estava deslocado, estava entre outros homens e ainda assim comia lixo, mas a sua fome não era de comida, a sua fome era de ser homem, era fome de deixar de ser bicho. É nesse momento que a humanidade não é um conceito, uma palavra para ser dita por bocas cheias de dentes. A humanidade não existe.


São Luís, 20 de fevereiro de 2014.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

História de bar nº 1: a mulher de olhos tristes




Na verdade, quando comecei a escrever este texto, imaginava fazê-lo me baseando em um fato bem simples que presenciei. Entretanto, a história foi ganhando rumos diversos dos quais eu havia escolhido e quando terminei já não era nada do que eu havia pensado. Publico como crônica, muito embora também pudesse ir como conto.



                Moscas rodeiam a minha cabeça. Na certa cobiçam o copo de cerveja que desfia bolhas solitárias na imensidão de mais uma bebedeira. Acendo um cigarro, a fumaça em absoluto as incomoda, então permanecem aqui, fumando comigo e a fumaça – essa companheira nefasta – convida a dançar mais um inevitável câncer. A vida é muito mais que isto, penso, mas ignoro a boa voz que insiste em me acompanhar nessas horas. Sacudo as mãos afastando as moscas de meu copo – alguém deveria tomar uma providência em relação a isso. Observo-as voando, elas são grandes, gordas, varejeiras de minha existência. Baixo meus olhos e um cão me encara inquisidor. Só faltava essa, digo entredentes como se falasse para o animal, que, como se entendesse alguma coisa, em resposta lambe meus sapatos. O gesto me afeta e sinto-me tocado de estranha afeição ao me achar afagado no bar sujo em que agora estou.
                Olho para fora, para rua e tudo é comum. Aqui dentro também não é diferente, mas em algum canto do mundo, seja lá onde fosse, não deveria haver um pouco de esperança quando pomos a cabeça para fora e espiamos a rua? Pego a garrafa para encher meu copo novamente e sinto seu peso, está vazia. Procuro o garçom com os olhos e o encontro debruçado na mesa de sinuca, dando pitacos no jogo de outros dois sujos que se limitam a ignorá-lo. Levanto o braço convocando-o. Caminha até junto de mim com um desses sorrisos falsos que damos para pessoas que nunca mais veremos na vida. Outra, patrão, pergunta. Aquiesço e ele sai para buscar outra cerveja.
                Meu relógio marca sete e quinze, a noite já começou. Não devo ter prestado muita atenção – sempre fui muito distraído mesmo –, mas de repente o bar se encheu de novos rostos. Às vezes gosto de ficar olhando para a cara das pessoas, muito embora a maioria não goste. Entretanto sempre existem os que não dão à mínima para meu ato e é deles que extraio material para algumas de minhas reflexões. Noto, por exemplo, o casal sentado a uma das mesas: um homem careca e uma mulher de olhos tristes. Concentro-me nela, mas não consigo precisar a sua idade. Sei que é uma mulher e deve estar na idade em que são mais interessantes, em que têm mais coisas a oferecer. Já o homem tem traços mais discerníveis, com certeza deve ter passado da casa dos cinquenta. Ele observa atentamente os esgares da mulher, o movimento de sua boca, o vai e vem de sua mão que segura um cigarro aceso.
                O garçom traz minha cerveja. Está geladinha, meu patrão, diz. Olho para ele e esboço um sorriso – sujeito antipático esse garçom – é o máximo que posso fazer. Ao tomar o primeiro gole percebo que mentia ou não sabia distinguir o frio do quente – o que deve ser péssimo para um garçom –, pois a cerveja não está gelada.
                Torno a procurar o casal. Continuam como estavam em minha lembrança. Ela inquieta, com outro cigarro na mão, falando demais, fumando demais. Noto que seu corpo fala uma coisa, mas seus olhos tristes dizem outra e o que seus olhos dizem é claro: seu corpo mente. Enquanto ao homem, permanece atento, como se quisesse pegar no ar cada palavra que ela emite, como se a atenção dada fosse um passaporte para uma noite que já, já começa.
                Olho outra vez para o relógio, mas gesto mnemônico nem reparo as horas, insisto em pensar no casal. Todos existimos neste cenário sujo, porém não sabemos da existência de nós mesmos; eu com minhas angústias, eles com sua conversa. Penso em sentar à mesa com eles, cear a conversa deles. Permaneço onde estou sentado. As moscas não rodeiam mais a minha cabeça e o cão que lambia meus sapatos já me abandonou faz tempo – eu devia ter pedido um tira gosto e implorado sua companhia.
                O casal parece entrar em sintonia, porque pela primeira vez sorriem juntos. Busco novamente os olhos da mulher, já não me parecem tristes e o homem que a acompanha – e isso não sei por que sei – não o percebe. Tenciono pegar o copo e sorver a certeza de que a tristeza da mulher se esvaiu de seus olhos, mas ele cai de minhas mãos e se quebra no chão. Meu rosto se multiplica nos vários cacos epalhados e eles – todos eles – exibem a mesma expressão de embriaguez. O barulho deve ter sido enorme, pois todos – até mesmo o casal – olham em minha direção. A certeza de que estou bêbado aparece e a sensação de que ninguém me notava desaparece. Já é hora de ir. Chamo o garçom – que leva uma eternidade para vir – e pago a conta. Recebo com o troco um volte sempre. Voltarei, digo, mas minto, nunca mais porei os pés aqui, e apenas eu sei disto e somente eu me importo com isto. Caminho trôpego e bêbedo por entre as mesas e por um instante – apenas um – paro em frente ao casal. O homem ignora-me completamente, contudo – e isso que me importa – a mulher sabe eu estou ali – sei que sabe. Olha-me curiosa e seus olhos não estão mais tristes – os meus também não. Saio do bar. Do lado de fora quem me afaga é a noite. Presumo que deva ser umas dez e meia, noite alta, portanto.
                Meu dia está apenas começando.


São Luís, 21 de fevereiro de 2014.