Na verdade, quando comecei a escrever este texto, imaginava
fazê-lo me baseando em um fato bem simples que presenciei. Entretanto, a
história foi ganhando rumos diversos dos quais eu havia escolhido e quando
terminei já não era nada do que eu havia pensado. Publico como crônica, muito
embora também pudesse ir como conto.
Moscas
rodeiam a minha cabeça. Na certa cobiçam o copo de cerveja que desfia bolhas
solitárias na imensidão de mais uma bebedeira. Acendo um cigarro, a fumaça em
absoluto as incomoda, então permanecem aqui, fumando comigo e a fumaça – essa
companheira nefasta – convida a dançar mais um inevitável câncer. A vida é
muito mais que isto, penso, mas ignoro a boa voz que insiste em me acompanhar
nessas horas. Sacudo as mãos afastando as moscas de meu copo – alguém deveria
tomar uma providência em relação a isso. Observo-as voando, elas são grandes,
gordas, varejeiras de minha existência. Baixo meus olhos e um cão me encara
inquisidor. Só faltava essa, digo entredentes como se falasse para o animal,
que, como se entendesse alguma coisa, em resposta lambe meus sapatos. O gesto
me afeta e sinto-me tocado de estranha afeição ao me achar afagado no bar sujo
em que agora estou.
Olho
para fora, para rua e tudo é comum. Aqui dentro também não é diferente, mas em
algum canto do mundo, seja lá onde fosse, não deveria haver um pouco de
esperança quando pomos a cabeça para fora e espiamos a rua? Pego a garrafa para
encher meu copo novamente e sinto seu peso, está vazia. Procuro o garçom com os
olhos e o encontro debruçado na mesa de sinuca, dando pitacos no jogo de outros
dois sujos que se limitam a ignorá-lo. Levanto o braço convocando-o. Caminha
até junto de mim com um desses sorrisos falsos que damos para pessoas que nunca
mais veremos na vida. Outra, patrão, pergunta. Aquiesço e ele sai para buscar
outra cerveja.
Meu relógio marca sete e quinze,
a noite já começou. Não devo ter prestado muita atenção – sempre fui muito
distraído mesmo –, mas de repente o bar se encheu de novos rostos. Às vezes
gosto de ficar olhando para a cara das pessoas, muito embora a maioria não
goste. Entretanto sempre existem os que não dão à mínima para meu ato e é deles
que extraio material para algumas de minhas reflexões. Noto, por exemplo, o
casal sentado a uma das mesas: um homem careca e uma mulher de olhos tristes.
Concentro-me nela, mas não consigo precisar a sua idade. Sei que é uma mulher e
deve estar na idade em que são mais interessantes, em que têm mais coisas a
oferecer. Já o homem tem traços mais discerníveis, com certeza deve ter passado
da casa dos cinquenta. Ele observa atentamente os esgares da mulher, o
movimento de sua boca, o vai e vem de sua mão que segura um cigarro aceso.
O garçom traz minha cerveja.
Está geladinha, meu patrão, diz. Olho para ele e esboço um sorriso – sujeito
antipático esse garçom – é o máximo que posso fazer. Ao tomar o primeiro gole
percebo que mentia ou não sabia distinguir o frio do quente – o que deve ser
péssimo para um garçom –, pois a cerveja não está gelada.
Torno a procurar o casal.
Continuam como estavam em minha lembrança. Ela inquieta, com outro cigarro na
mão, falando demais, fumando demais. Noto que seu corpo fala uma coisa, mas
seus olhos tristes dizem outra e o que seus olhos dizem é claro: seu corpo
mente. Enquanto ao homem, permanece atento, como se quisesse pegar no ar cada
palavra que ela emite, como se a atenção dada fosse um passaporte para uma
noite que já, já começa.
Olho outra vez para o relógio,
mas gesto mnemônico nem reparo as horas, insisto em pensar no casal. Todos
existimos neste cenário sujo, porém não sabemos da existência de nós mesmos; eu
com minhas angústias, eles com sua conversa. Penso em sentar à mesa com eles,
cear a conversa deles. Permaneço onde estou sentado. As moscas não rodeiam mais
a minha cabeça e o cão que lambia meus sapatos já me abandonou faz tempo – eu
devia ter pedido um tira gosto e implorado sua companhia.
O casal parece entrar em
sintonia, porque pela primeira vez sorriem juntos. Busco novamente os olhos da
mulher, já não me parecem tristes e o homem que a acompanha – e isso não sei por
que sei – não o percebe. Tenciono pegar o copo e sorver a certeza de que a
tristeza da mulher se esvaiu de seus olhos, mas ele cai de minhas mãos e se
quebra no chão. Meu rosto se multiplica nos vários cacos epalhados e eles –
todos eles – exibem a mesma expressão de embriaguez. O barulho deve ter sido
enorme, pois todos – até mesmo o casal – olham em minha direção. A certeza de
que estou bêbado aparece e a sensação de que ninguém me notava desaparece. Já é
hora de ir. Chamo o garçom – que leva uma eternidade para vir – e pago a conta.
Recebo com o troco um volte sempre. Voltarei, digo, mas minto, nunca mais porei
os pés aqui, e apenas eu sei disto e somente eu me importo com isto. Caminho
trôpego e bêbedo por entre as mesas e por um instante – apenas um – paro em
frente ao casal. O homem ignora-me completamente, contudo – e isso que me
importa – a mulher sabe eu estou ali – sei que sabe. Olha-me curiosa e seus
olhos não estão mais tristes – os meus também não. Saio do bar. Do lado de fora
quem me afaga é a noite. Presumo que deva ser umas dez e meia, noite alta,
portanto.
Meu dia está apenas começando.
São
Luís, 21 de fevereiro de 2014.