domingo, 30 de agosto de 2009

As grandes verdades do mundo


Antes da preocupação mundial com o H1N1, eu já tinha um zelo excessivo com a higiene das minhas mãos. Hoje em dia nem se fala! Há alguns anos, um amigo reparava com curioso afinco o modo como eu lavavas. As lavava meticuloso: palmas das mãos, dorsos das mãos, divisões dos dedos, dedos individualmente, pontas dos dedos. Terminada a lavagem, desligava a torneira com o cotovelo, nem as enxugava, apenas as sacudia.

Incomodado com o olhar de meu amigo, perguntei:

“O que foi?”

“Por que você lava tanto as mãos?”

“Você não sabe”, disse com os trejeitos de um sábio. “As mãos, meu querido, são as partes mais sujas do corpo humano. Você as passa em todo lugar, você as leva à boca, aos olhos, ao corpo todo. É por isso que me preocupo tanto com elas, lavando-as o tempo todo.”

Meu amigo me encarou e, sem o mais leve estremecimento, retorquiu:

“A parte mais suja do corpo do homem é a cabeça dele.”

Foi nesse dia que aprendi que grandes verdades podem ser repassadas assim, sem a menor preparação, nas situações mais inesperadas e vindas de tão estranhos mestres.

domingo, 23 de agosto de 2009

O poder da criatividade




Não sei por que, hoje acordei pensando em papilas gustativas. Sim, papilas gustativas, aquelas que ficam na língua. Deus inventou coisa melhor que papilas gustativas? Existe algo melhor do que vir da rua, cheio de sede, abrir a geladeira, tomar uma limonada, botar as tais papilas para funcionar e ser prazerosamente atingido por aquilo de mais simples que as sensações podem oferecer? Deus não é realmente criativo?

Deus inventou o homem. O homem é criativo, capaz de inventar muitas outras coisas também (claro que nada se compara às papilas gustativas). Inventou a roda, o carro, o avião, micro-ondas, celular, feriado (ah, isso não, o feriado também foi criado por Deus, no sétimo dia da criação, conforme no livro do Gênesis), a dança, a poesia, o pistache (aliás, o pistache é algo que se fabrica ou se colhe?). Criou a angústia, o desespero, os ansiolíticos. Curiosamente, antes de inventar a arma, o homem inventou o homicídio. Cá entre nós, o homicídio não parece ser uma de suas invenções mais sensatas, afinal, para quê matar uma pessoa que vai morrer de qualquer jeito?

A criatividade sempre foi uma ferramenta essencial quando o assunto é andar para frente; avançar no tempo (tai outra invenção nossa: o tempo e a falta dele). Com a criatividade fizemos grandes descobertas e elas custaram sangue, suor e lágrimas – que nem no discurso de Churchil. Inexoravelmente o ponto de partida é o mesmo de chegada, a máquina do mundo gira por causa das perguntas cujas respostas nem sempre podem ser agradáveis. Pontes, prédios, cidades, estações espaciais e ainda assim se pergunta sobre a realidade fundamental do mundo. Quem é que pode saber disso? Uso meu mp4, ele toca música e daí? Vou ao “shopping”, faço compras, assisto à televisão, converso pelo meu celular e não me interesso minimamente pelo que faço. Inventos como esses e tantos outros, postos no mundo por causa de nossa criatividade, se fazem necessários para responder determinadas perguntas. Só que haja criatividade! Ainda não resolvemos os problemas que surgiram quando se tentava resolver outros problemas e mesmo assim continuamos a inventá-los. Criatividade mesmo é quando pensamos que o fundamental ainda é se espantar; é ainda ter o instinto necessário para se perguntar sabiamente – como faziam os antigos. Se a resposta irá vir, aí já serão outros quinhentos! Ai, ai, ai, não gosto de pensar nisso tudo, começa me dar a idéia de que posso ser apenas o pensamento de alguém; de que não tenho sequer certeza de que aqui estou, escrevendo isto para vocês. Nestas horas bate depressão, desespero, ignorância e até sede. Falando em sede, vocês ainda lembram da história das papilas gustativas? Alguém aí aceita uma limonada?

domingo, 16 de agosto de 2009

A angustia da página em branco


Quem escreve, em geral tem um único tipo de preocupação: escrever. Nem precisa ser de maneira profissional, basta que o texto seja satisfatório a quem se destina ou até mesmo para o próprio autor (eu, por exemplo, tenho pilhas e pilhas de texto que adoro, contudo considero-os impublicáveis). Sendo assim, os fins de semana me deixam impaciente, já que é o período em que tenho que escrever algo novo, e por isso mesmo sinto que as palavras meio que fogem de mim.

Alguém certa vez disse (ou, mais adequadamente, escreveu) que a luta com as palavras é a luta mais vã. Afirmativa verdadeira em muitos aspectos. Diante das palavras o escritor se torna um guerreiro ou até mesmo um xamã que exorciza a falta de criatividade, atraindo para si os bons espíritos, as boas idéias, o bom texto. É sério, escrever até parece magia quando nos vemos hipnotizados por um bom livro. Neste instante mesmo contemplo alguns magos e seus feitiços, aprisionados em minha estante: Machado de Assis, Rubem Fonseca, Vargas Llosa, Gustave Flaubert, Honoré de Balzac e por aí vai.

(ah, bom Deus, fazei-me instrumento de vossa vontade, transformando vossas imagens oníricas em um texto capaz de encantar as multidões!) Às vezes, fervoroso, clamo ajudas aos céus para superar os desafios de uma página em branco; outras, ateu, amaldiçôo-me na minha própria falta de fé. Tem gente que quando escreve é toda alma e tem gente que é toda cabeça. Uns sabem, outros inventam. Alguém consegue fazer o dever de casa ou então joga verdadeiros Lusíadas no lixo. Com inspiração, sem inspiração. Com texto, sem texto, os resultados de minha concentração ainda me espantam. Escrever é luta solitária que não se pode vencer sozinho. Envolve a solidão e o crepúsculo, mas também envolve as vozes do passado – os autores que um dia lemos – e a aurora. Não importa o resultado que se alcance, meu texto vai ser no máximo bom ou ruim, no entanto, o esforço que desperdiço ao fazê-lo me revela, no final, quem sou e quem somos. E já que se falou em vozes do passado, neste instante mesmo escuto um Drummond de anos atrás: “Palavra, palavra (digo exasperado), se me desafias, aceito o combate”.

domingo, 9 de agosto de 2009

Dia dos pais


Para Meu Pai



Tem um conto chamado “Idolatria”, de Sérgio Faraco, presente na coletânea “Os Cem Melhores Contos Brasileiros do Século XX”, que me marcou muito. Até hoje penso no eco que aquela pequena história deixou em mim e penso nela como a genuína admiração que temos pela figura de nosso pai, é justamente disso que o conto trata: as descobertas que pai e filho fazem de si, enquanto estão presos no carro por causa de um atoleiro, tudo sob a ótica da criança que narra a história. Citei o conto porque no fundo eu e meu pai sempre fomos um mistério um para o outro; “presos num atoleiro”, obrigados a achar a resposta que completaria um de nós.

Travei com meu pai uma relação por vezes desarmônica. Que ninguém se preocupe, não vim fazer análise, só me certificar que assim como eu, muitos outros filhos também tiveram sua cota de mistério com seu genitor. A relação pai/filho, talvez seja um desses grandes confrontos que nós, homens, temos de enfrentar para saber como é a vida. Não sei como vocês foram criados, mas entre mim e ele, não houve tantos sorrisos quanto desejei que tivessem. Talvez tenha sido por essa carência que eu tenha aprendido a valorizar tanto os poucos que vi brotar de seus lábios. Não sei se a origem disso é a cultura ou outro motivo qualquer. Bom, a família de meu pai não está tanto tempo assim no Brasil. Se não me engano, meu bisavô veio de Portugal, instalou-se no Ceará, na cidade de Sobral. Lá, no meio do sertão cearense, nasceu Joker Ribeiro, meu avô. Então meu avô resolveu migrar para o Maranhão, cidade de Codó, por lá foi chefe de uma estação ferroviária e teve vinte e cinco filhos, entre eles meu pai, Raimundo Ribeiro. Este último, veio para São Luís, casou, enviuvou, casou de novo, desta vez com minha mãe, e teve, com duas famílias, seis filhos, sendo eu, Thomaz Ribeiro, o seu penúltimo. Esta é mais ou menos a minha genealogia: da Península Ibérica para o sertão do Ceará, do sertão do Ceará para a aventura no Maranhão. Uma criação empurrada em navios, sufocada nas areias do sertão e entre os frios trilhos de uma ferrovia. A família Ribeiro gerou homens laboriosos, de forte sentido prático e com pouca – ou quase nenhuma – capacidade de expressar sentimentos.

Este é o quinto dia dos pais que passo sem o meu. O seu Ribeiro, como nós o chamávamos, faleceu em 2004, aos 66 anos. O que ficou em nós, que aqui ficamos, foi a saudade. Hoje sou o centro do dia dos pais, sou eu quem recebe os presentes, mas, é claro, sinto sua falta, a ponto de muitas vezes esquecer que ele não está mais por aqui. Perto de falecer meu pai ainda me ensinou muitas lições. Tivemos a oportunidade de por muita bagunça em ordem, de botar os pingos em quase todos os “is”. Entender o que se passa na cabeça do outro não é lá tarefa muito – e se o outro ainda por cima é o próprio pai, pior ainda. O que queremos mesmo é que gostem da gente do jeito que sabemos gostar e convenhamos isso é impossível. Mas até se ter a consciência dessa impossibilidade, já se “bateu muita cabeça”, já se cometeu muito equívoco e se falou muita bobagem. Meu pai me ensinou que às vezes nos enganamos e que somos capazes de cometer os mesmos erros que eles. Que às vezes a falta de tato, um gesto que possa parecer mais brusco, não significa que nossos pais não gostem da gente, mas que apenas possuem uma maneira diferente de se expressar e que por mais que essa maneira não pareça ser adequada, é o que se dispõe, mas também o que se pode negociar. Aprendi que seu Ribeiro tinha uma maneira só dele de gostar, de sentir orgulho, como quando ganhei um concurso de poesia e ele incrédulo falou: eu não sabia que tu eras poeta. Esse era seu Ribeiro, esse era meu pai. Meu nome é Thomaz Ribeiro, sou casado, tenho crianças e ainda choro de saudades quando penso nele. Se um dia meus filhos gostarem de mim metade do que gosto do meu pai, com certeza serei um sujeito muito orgulhoso. De onde ele está, sei que sabe que isso é verdade e que mesmo sendo uma declaração diferente, como ele era, essa é uma maneira – que por mais que relutasse, herdei dele – de expressar o que sinto.

P.S: Hoje eu tinha outra crônica em mente. Falar sobre o dia dos pais é muito óbvio, mas sou assim mesmo, óbvio demais. A todos, feliz dia dos pais.

domingo, 2 de agosto de 2009

A mulher que enxergava a música


Vi num programa dominical um reportagem que me deixou encantado. Era sobre uma mulher que via e sentia o gosto da música. A explicação científica para o fenômeno era complicada e eu, pobre leigo que sou, sou incapaz de reproduzi-la. Mas o importante é o fato: ela enxerga e sente – literalmente – a música. Isso não é maravilhoso?

Se pudéssemos voltar no tempo, digamos até a Idade Média, por exemplo, a mulher dificilmente escaparia da fogueira, se revelasse ser a dona do prodígio. Em outra época tratar-se-ia de um milagre. Nos dias de hoje, diante do frio aval da ciência, é o fruto de ligações neuroquímicas, cuja capacidade é restrita a um limitado número de pessoas, portanto é um acontecimento inserido em uma cadeia de previsibilidade – ainda que seja raro.

Nunca fui um entusiasta a respeito de determinadas certezas do mundo, o progresso é uma delas. As minhas leituras da época da faculdade apenas me fizeram crer que neste terceiro milênio se encontraria o triunfo da razão. E isso não é utópico frente ao que a ciência pode oferecer. O problema é o paradoxo. Produz-se comida suficiente para todos, só que ainda há fome. Domina-se a exploração de petróleo em águas profundas e em terra firme mesmo, há gente que não tem casa. A meta é conquistar o universo, enquanto no planeta Terra surgem 50 espécies não catalogadas todos os dias. A previsão do tempo diz que fará sol o dia todo e mesmo assim ainda chove. O conhecimento humano pode dar tudo, ao mesmo tempo em que mostra faltar muita coisa.

Diante da imparcialidade dos números e da força das leis científicas, o antídoto é, vez em quando, acreditar em milagres. E o que é um milagre? Um milagre é um fenômeno que ultrapassa o desconhecido, que insolentemente desafia as fronteiras do real. Sempre acreditei que o êxito de pessoas como Jesus Cristo e Sócrates, foi desafiar as regras do jogo, não se omitir nem silenciar, mesmo sob a ameaça de imposição da maior barreira que se pode impor, essas pessoas não temeram sequer a morte e independentemente do que se acredite, essas pessoas forma vencedoras – tanto que é delas que se está falando. Não é ser otimista em excesso, mas com tudo que se vê hoje em dia, saber que existem pessoas capazes de perceber o mundo de outra maneira, enxergando e sentindo o gosto da música, por exemplo, não deixa de ser um milagre.