sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

História de bar nº 1: a mulher de olhos tristes




Na verdade, quando comecei a escrever este texto, imaginava fazê-lo me baseando em um fato bem simples que presenciei. Entretanto, a história foi ganhando rumos diversos dos quais eu havia escolhido e quando terminei já não era nada do que eu havia pensado. Publico como crônica, muito embora também pudesse ir como conto.



                Moscas rodeiam a minha cabeça. Na certa cobiçam o copo de cerveja que desfia bolhas solitárias na imensidão de mais uma bebedeira. Acendo um cigarro, a fumaça em absoluto as incomoda, então permanecem aqui, fumando comigo e a fumaça – essa companheira nefasta – convida a dançar mais um inevitável câncer. A vida é muito mais que isto, penso, mas ignoro a boa voz que insiste em me acompanhar nessas horas. Sacudo as mãos afastando as moscas de meu copo – alguém deveria tomar uma providência em relação a isso. Observo-as voando, elas são grandes, gordas, varejeiras de minha existência. Baixo meus olhos e um cão me encara inquisidor. Só faltava essa, digo entredentes como se falasse para o animal, que, como se entendesse alguma coisa, em resposta lambe meus sapatos. O gesto me afeta e sinto-me tocado de estranha afeição ao me achar afagado no bar sujo em que agora estou.
                Olho para fora, para rua e tudo é comum. Aqui dentro também não é diferente, mas em algum canto do mundo, seja lá onde fosse, não deveria haver um pouco de esperança quando pomos a cabeça para fora e espiamos a rua? Pego a garrafa para encher meu copo novamente e sinto seu peso, está vazia. Procuro o garçom com os olhos e o encontro debruçado na mesa de sinuca, dando pitacos no jogo de outros dois sujos que se limitam a ignorá-lo. Levanto o braço convocando-o. Caminha até junto de mim com um desses sorrisos falsos que damos para pessoas que nunca mais veremos na vida. Outra, patrão, pergunta. Aquiesço e ele sai para buscar outra cerveja.
                Meu relógio marca sete e quinze, a noite já começou. Não devo ter prestado muita atenção – sempre fui muito distraído mesmo –, mas de repente o bar se encheu de novos rostos. Às vezes gosto de ficar olhando para a cara das pessoas, muito embora a maioria não goste. Entretanto sempre existem os que não dão à mínima para meu ato e é deles que extraio material para algumas de minhas reflexões. Noto, por exemplo, o casal sentado a uma das mesas: um homem careca e uma mulher de olhos tristes. Concentro-me nela, mas não consigo precisar a sua idade. Sei que é uma mulher e deve estar na idade em que são mais interessantes, em que têm mais coisas a oferecer. Já o homem tem traços mais discerníveis, com certeza deve ter passado da casa dos cinquenta. Ele observa atentamente os esgares da mulher, o movimento de sua boca, o vai e vem de sua mão que segura um cigarro aceso.
                O garçom traz minha cerveja. Está geladinha, meu patrão, diz. Olho para ele e esboço um sorriso – sujeito antipático esse garçom – é o máximo que posso fazer. Ao tomar o primeiro gole percebo que mentia ou não sabia distinguir o frio do quente – o que deve ser péssimo para um garçom –, pois a cerveja não está gelada.
                Torno a procurar o casal. Continuam como estavam em minha lembrança. Ela inquieta, com outro cigarro na mão, falando demais, fumando demais. Noto que seu corpo fala uma coisa, mas seus olhos tristes dizem outra e o que seus olhos dizem é claro: seu corpo mente. Enquanto ao homem, permanece atento, como se quisesse pegar no ar cada palavra que ela emite, como se a atenção dada fosse um passaporte para uma noite que já, já começa.
                Olho outra vez para o relógio, mas gesto mnemônico nem reparo as horas, insisto em pensar no casal. Todos existimos neste cenário sujo, porém não sabemos da existência de nós mesmos; eu com minhas angústias, eles com sua conversa. Penso em sentar à mesa com eles, cear a conversa deles. Permaneço onde estou sentado. As moscas não rodeiam mais a minha cabeça e o cão que lambia meus sapatos já me abandonou faz tempo – eu devia ter pedido um tira gosto e implorado sua companhia.
                O casal parece entrar em sintonia, porque pela primeira vez sorriem juntos. Busco novamente os olhos da mulher, já não me parecem tristes e o homem que a acompanha – e isso não sei por que sei – não o percebe. Tenciono pegar o copo e sorver a certeza de que a tristeza da mulher se esvaiu de seus olhos, mas ele cai de minhas mãos e se quebra no chão. Meu rosto se multiplica nos vários cacos epalhados e eles – todos eles – exibem a mesma expressão de embriaguez. O barulho deve ter sido enorme, pois todos – até mesmo o casal – olham em minha direção. A certeza de que estou bêbado aparece e a sensação de que ninguém me notava desaparece. Já é hora de ir. Chamo o garçom – que leva uma eternidade para vir – e pago a conta. Recebo com o troco um volte sempre. Voltarei, digo, mas minto, nunca mais porei os pés aqui, e apenas eu sei disto e somente eu me importo com isto. Caminho trôpego e bêbedo por entre as mesas e por um instante – apenas um – paro em frente ao casal. O homem ignora-me completamente, contudo – e isso que me importa – a mulher sabe eu estou ali – sei que sabe. Olha-me curiosa e seus olhos não estão mais tristes – os meus também não. Saio do bar. Do lado de fora quem me afaga é a noite. Presumo que deva ser umas dez e meia, noite alta, portanto.
                Meu dia está apenas começando.


São Luís, 21 de fevereiro de 2014.

sábado, 15 de fevereiro de 2014

Um homem na praia



O sol perde-se na linha do horizonte. Mais adiante, no mar, os navios flutuam preguiçosos na arrebentação. Um homem curva-se cansado, a caminhada lhe parece mais distante. Em seu cansaço pergunta a si mesmo por que caminhou tanto. Porque eu podia caminhar tanto, porque eu posso caminhar tanto, diz como verdade intransigente, mas o curvar doloroso da coluna está ali para desmenti-lo. A vida passa tão rápido como esta caminhada. A frase dita assim é força, força necessária para movê-lo para longe daqueles paralelepípedos desafiadores. Pergunta o que fez de si mesmo. Ora, responde, fiz muita coisa, fiz o que pude fazer de mim: nasci, trabalhei, tive filhos, enviuvei, estudei, amei e até cri. Pensa na falta de originalidade no final de sua frase, de como ficaria melhor no poema do Pessoa e não em sua caminhada. É estranho pensar em tudo aquilo sem saber por que se está pensando em tudo aquilo. Não poderia pensar na própria vida? Era pecado? Não tinha valido a pena? Tinha. Tinha sim, mas, afinal, não estava dando apenas uma caminhada descomprometida, só uma caminhada descomprometida? Levanta a cabeça. O calçadão com seus paralelepípedos estendem-se infinitos seguindo a orla. A lua se põe em seu lugar. Os navios acendem suas luzes, desenhando falsas estrelas no oceano. As pessoas caminham, terminando seus exercícios, cumprindo o dever de ter um corpo saudável. Tudo se move. Tudo está em movimento. Menos o homem que insiste em permanecer curvado, alheio à vida pulsante ao seu redor. De repente enrijece o corpo. O caminho à sua frente é o mesmo, mas não é mais o mesmo, é outro. Respira profundamente, sente o ar arejar-lhe a cabeça. Os músculos, os velhos músculos que estão lá desde o começo dos tempos, voltarem a funcionar. Sente algo despertar dentro de si, algo que provoca revoluções, as mesmas que movem o universo todo. Torna a caminhar. Sorri. Acena para os desconhecidos que cruzam seu caminho. Sente lágrimas banharem seu rosto. Não é apenas um caminho, pensa, e todas as nossas batalhas são disputadas dentro de nós mesmos.
                A vida valeu a pena. Valeu mesmo.


São Luís, 12 de fevereiro de 2014.

sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Olhos de boi

Ela não era muito jovem para estar casada, mas com certeza o era para ser viúva.  As duas alianças enfiadas no mesmo dedo da mão esquerda, como ordenam os ritos cristãos, não deixavam dúvida alguma: enviuvara.
                Podia até ser que não tivesse perdido o marido e que as alianças – que naquele caso assumiriam o papel de simples anéis – estivessem ali somente na condição de adorno, nada mais que uma questão de estilismo, coisa comum da juventude. Acreditei na primeira assertiva, aquela que a colocava no grupo das santas mulheres que vestem preto.  Além do mais – imaginei eu – exibia sinais de quem havia perdido a pessoa que lhe segredou histórias nos ouvidos; que certa vez perdeu o olhar em um ponto qualquer de seu corpo; que perdia seus cabelos entre os dedos; que observou a gota de suor que escorregava de sua nuca. Olhei mais atentamente para a mulher e achei que estava curvada, com o aspecto cansado, com a juventude morando nos olhos de quem a olhava à distância, pois observando-a  mais de perto, dela se roubava com facilidade uns dez anos ou mais. Senti que não era a velhice do tempo. Era a velhice da perda.
                Não sei se era bonita, talvez até fosse, não reparei. Notei sim que tinha um enorme par de olhos bovinos. Nada sei da natureza dos bois, mas isso não me impede de comparar os olhos da moça aos desses animais. Pode parecer estranho isso, mas quem já esteve em um matadouro sabe do que estou falando. Eles – os bois – ficam lá parados, pacientes, totalmente alheios ao que os aguarda, esperando o inevitável desenrolar dos acontecimentos. Assim como o olhar bovino, o olhar da moça mostrava conformidade com a natureza de alguma espécie de destino.
                A moça podia não ser viúva e eu podia estar enganado. Na verdade, pensando bem, ela poderia ser qualquer coisa, entretanto, conforme os detalhes que ainda há pouco expus, achei que fosse. Quando ela foi desaparecendo de minha vista, com certeza dando prosseguimento à sua própria vida, percebi que eu não teria certeza de nada. Ela podia ser uma irmã de sofrimento, podia não ser. Podia ser uma viúva de olhos bovinos. Podia ser qualquer coisa.



P.S.: Depois de tanto tempo, é bom estar de volta.