domingo, 29 de novembro de 2009

Conversa de criança


Domingo. Estou na janela de minha casa, nada para fazer. Mas na casa em frente, na calçada, três meninos conversam trivialidades entre si – como só os meninos sabem fazer.

“Aquele cachorro é muito inteligente”, diz um deles, apontando para o animal que se coça ao longe, “ele leva o jornal para o seu dono.”

De repente me flagro atento à conversa e imagino a cena de filme americano: um animal que zelosamente mantém seu dono informado com as notícias do dia, enquanto lhe lambe as faces em subserviência e felicidade.

A infância também tem das suas disputas, uma delas é não ficar para trás em alguma conversa e o outro garoto, a despeito do que disse o primeiro, revela a proeza de seu bicho:

“O meu gato também é muito inteligente, pois ontem, sabendo que era dia de vacinação, não desceu do telhado.”

Continuo achando graça. O segundo menino mostra acontecimentos que vejo com mais freqüência.

Já o terceiro, que até então estava incógnito em meio à conversa dos outros dois, pode até não ser o que mais esteja à vontade com os acordos de verdade do mundo, mas com certeza é o mais criativo dos três.“Pois o gato lá de casa é mais inteligente ainda, imaginem vocês que ele saiu de casa, foi vacinar e voltou para casa sozinho.”

Os outros dois riem, não sei se em concordância ou negação daquilo que foi dito. As horas passam, vem a noite, se sobrepondo à tarde e mais uma vez a inocência da infância suplanta a dura realidade de uma véspera de segunda-feira.

domingo, 22 de novembro de 2009

(I)números que não se contam mais


Ela repuxa o vestido como se este fosse uma manta. Ao fazê-lo resmunga. O pedaço de pano sujo que lhe cobre o corpo é incapaz de cumprir tão ingrata e improvisada tarefa. A boca que se murcha, não se sabe se em sonho ou pesadelo, gagueja pragas perdidas na noite. Se se encolhe e não lhe basta o vestido para cobrir a dignidade é porque tem frio e se lhe faltam forças para esfregar os braços como dissesse ao frio, estou aqui e basto para mim mesma, é porque é velha e já não lhe valem sequer as idéias da distante juventude. E se ainda assim não lhe bastaram as tragédias de sua própria vida, as ruas, que para ela são o correspondente a um lar, lhe mostraram umas tantas outras.

Da janela de um ônibus qualquer se vê claramente, a velha é uma criatura entre tantas outras mil criaturas; tantas outras mil agonias de um sábado à noite. Dia seguinte: almoços de domingo, filmes no cinema, passeio no parque, volta para casa. Que parte da vida comum, da coisa comum, de um domingo comum lhe foi negada?

Aqueles que são os grandes homens do mundo. Aqueles que são grandes e que ainda assim não enxergam a pequenez dos que já são pequenos, se pudessem vir e olhar o sofrimento dos que do dia só comem a poeira do mundo, saberiam como ele é maior que o ego.

Enquanto as dores do mundo rasgam os que estão com o rosto colado às janelas do ônibus qualquer, a velha se revira no mundo (acordando?), as entranhas se mexendo em espasmo. Olha para alguém (do ônibus?). Parece que olha, mas não olha, o juízo lhe eclipsou os olhos. O ônibus corre macio, entrando mais e mais dentro da garganta da noite. Uma voz diz, ide e anunciai, outra responde, o que olhos não vêem (ou fingem não ver) o coração não sente. O ônibus se afasta mais. A velha vai sumindo quadro a quadro, cinematográfica. Volta a dormir.

sábado, 14 de novembro de 2009

O caranguejo


Meu primeiro contato com a maldade humana foi aos cinco anos, ainda que esta tenha sido sentida em seu estágio mais primário, momento em que chamam esse ensaio da pobreza moral simplesmente por traquinagem. O evento, mesmo na tenra idade em que me encontrava, foi, na minha vida adulta, a pedra de toque para minhas relações tão arredias com os outros homens.

Costumava passar os fins-de-semana na casa de minha avó. A casa era em um desses bairros, que antes de serem destruídos pela especulação imobiliária, agregavam uma classe média refinada – a fina flor de minha cidade. Lá se podia brincar livremente com os outros meninos, oportunidade que eu não desfrutava em minha casa, que ficava em um bairro mais afastado e intranqüilo. Naquele ambiente de condomínio fechado estávamos entregues ao tempo e a nós mesmos, então gastávamos a nossa tarde em atividades cuja finalidade não era específica, fosse priorizando a brincadeira, inserindo nas conversas os palavrões que não se falava em casa ou então refestelando-nos na vadiagem incriticável das tardes mornas.

Foi em um desses dias de minha desaparecida infância que, a fim de explorar as redondezas, desgarrei-me do grupo e me declarei rei de um pequeno quinhão. Investido de repentina autoridade, corri por entre as árvores; espantei borboletas; lutei espadas com o vento e rolei na grama em um riso alto e bobo de criança. Uma vez satisfeito de meus desejos individualistas, começava a retornar ao grupinho quando vi, deslocado do cenário e enfiado em um tronco, um bicho que até então não havia visto em minha curta vida. Horas mais tarde, com a cabeça no colo de minha mãe, saberia, de fato, que era um caranguejo. Ainda hoje os acho curiosos, osso por fora, a carne por dentro. A arquitetura ousada, hábil na lama, um despropósito no jardim em que estávamos naquele dia. Uma dessas belezas rústicas em que Deus, numa sutileza, faz questão de não fazer arte-final. Impressionante como podia surgir vida pulsante no lodo e não estava lá na bíblia que Ele, se quisesse, poderia fazer surgir das pedras filhos de Abraão? Como poderia ter parado ali? A maré era longe, provavelmente, assim como eu, desgarrara-se de sua cambada, dando prejuízo à outra criatura que do lodo também tirava seu sustento. Fiquei olhando, olhando, o corpo não emanava vida, senão dos estranhos olhos que se moviam curiosos (me olhando?) para todos os lados. Aproximei-me temeroso, não sabia se ele corria, voava – em minha cabeça ele podia fazer qualquer coisa. Em resposta o bicho levantou em ameaça a garra, a maior, a que devia usar para se defender de momentos como o que estávamos vivendo. Estanquei, mas não era medo, era uma admiração, achei-o lindo dentro dos limites de sua identidade. Deus é muito grande para existir por si só. Ele tem que se dividir para estar em todos os lugares, exposto e escondido nos pequenos fenômenos em que faz o homem, criatura em meio a outras criaturas, descobrir a si mesmo no silêncio da contemplação solitária. Queria mostrar ao demais, não ter só para mim os frutos de uma natureza tão generosa. Fui chamar os outros meninos. Não sabia do que chamar o meu achado, podia chamá-lo do que quisesse, a mim havia sido segredada a sua existência.

Quando chegamos, ele estava no mesmo lugar, inamovível. Os garotos olharam. Um deles riu e disse decepcionado: “Mas é só um caranguejo”. Achei o nome feio, eu poderia ter dado um melhor. De repente, sem que pudesse entender algo, vi uma pedra voando e a garra do caranguejo, a maior, desprender-se, caindo sem vida no chão. Voaram outras, na verdade uma chuva delas e de um momento a outro não havia mais caranguejo, só uma massa de carne indefinida. Os meninos riam, gritavam. A maldade neles surge assim, uma reação em cadeia impensada, onde o evento que sucede o outro não é resposta, mas estímulo de seu antecessor. Alegremente foram saindo, eu destruído por dentro, sem ter podido protestar ou entender os motivos do que fizeram – uma maldade! Anos mais tarde – quando os meninos já eram homens – eles não se lembrariam do ocorrido, mesmo que eu lhes tentasse reavivar a memória acerca do pequeno crime. Horrorizado, permaneci quieto, sem entender meu erro. Os meninos foram brincar – ainda havia muito para brincar.

Voltei à casa de minha avó chorando. Minha mãe, ao ver meu sofrimento, me afagou e contei-lhe o ocorrido. Consolado por minha genitora, adormeci e ainda triste sonhei sonhos sem caranguejos. Não voltei ao bairro durante muito tempo. Naquele dia aprendi duas coisas: que existem segredos que nasceram para ser segredos e que a dor – esta linguagem universal, capaz de unir homens e bichos – não se expressa aos gritos, como defendem os vegetarianos para justificar seu apetite por folhas, mas na linguagem do olhar, capaz de perceber aquilo que sofre. Os anos se passaram e eu cresci.

domingo, 1 de novembro de 2009

Do irrepetível


Minha mulher estava sugerindo alguns temas de crônicas quando surgiu a palavra irrepetível. Palavra forte e de teor muito definitivo. Mas ela soava estranha em meus ouvidos, tinha algo que me fazia duvidar de sua aplicabilidade no mundo morfossintático. Como não possuo dotes de filólogo, essa ciência de suma importância e pouco reconhecimento, pedi o auxílio do guia de ignorantes como eu, fui consultar o dicionário.

Usei o Silveira Bueno, antes tivesse usado o Aurélio, pois acabei não achando a tal palavra. Então vai aí uma definição intuitiva, de palavra cuja existência é duvidosa, de quem não é autoridade em coisa alguma. Irrepetível. Diz-se de algo que não se repete; único; diz-se daquilo que só acontece uma vez. Por meio de uma noção, ainda que superficial, pode-se vislumbrar o poder do que é irrepetível e da força que exerce na existência.

Dizem por aí que a vida é curta. É verdade, ela é curta mesmo e até onde se sabe – a despeito de Budismo, Espiritismo, Orfismo e demais doutrinas que falem em encarnação – é praticável não mais que uma única vez. Portanto, irrepetível. Como esta – a vida – é feita de momentos e momentos, existem aqueles que nós gostaríamos que se repetissem: o primeiro beijo de amor, o nascimento do filho, um dia especial. Naturalmente também existem os momentos em que damos graças aos céus por não acontecerem outra vez: a desilusão, uma frustração, a nota baixa que reprovou. Em nossa vida o irrepetível representa (supremo clichê) duas faces da mesma moeda; o que se quer ou não; o que se quer lembrar e o que se quer esquecer.

No soberbo a Insustentável Leveza do Ser, de Milan Kundera, a vida é comparada a uma peça de teatro que não se ensaiou previamente o texto. Vista deste modo a situação, os erros são inevitáveis, impossíveis de correção e por muitas vezes desastrosos. É um teatro em que as personagens que saem de cena não voltam mais. As pessoas que admiramos, que queremos bem, que amamos, a existência permite a todas elas – a você que lê a crônica e a mim que a escreveu – apenas um momento. Somos todos assim, provisórios, irrepetíveis e por mais que sejamos importantes, inteligentes, bonitos, um dia – cedo ou tarde, suave ou abruptamente – seremos arrancados de cena para permanecer no que está implícito naquilo que não se repete: o saudoso. Kierkegaard é que tinha razão: o instante é tudo. Diante de tudo isto, resta aconselhar o que é óbvio: viva intensamente cada momento como se fosse o ultimo, porque ele é mesmo. Depois da angústia de parir este texto, resta-me um consolo: esta angústia – especificamente esta – não se repetirá. A filologia devia ter ganhado um Nobel há muito tempo.