domingo, 6 de setembro de 2009

Minha tribo sou eu


Eu não sou cristão, eu não sou ateu.

Não sou japa, não sou “chicano”, não sou europeu.

Eu não sou negão, eu não sou judeu.

Não sou do samba nem sou do “rock”, minha tribo sou eu.

- Zeca Baleiro, Minha tribo sou eu

Desculpem se começo cantarolando. Não estou transformando isto em um musical, ainda reservo este espaço para crônicas. Esta música pertence a um conterrâneo amigo meu, chamado Zeca Baleiro. Vocês já devem ter ouvido falar dele, é só um pouquinho mais famoso que eu. Começo com a música simplesmente para ajudar a relatar um episódio muito singular que tive a oportunidade de estar presente.

Todo mundo já fez ou quem sabe ainda faz parte de alguma “tribo”. Digo, todos nós como parte de um todo social, fazemos parte de algum grupo. Vale qualquer coisa: turminha do colégio, coral da igreja, fã clube dos Menudos (há gosto pra tudo), torcida organizada do XV de Jau, o pessoal do “Orkut”. Além do quê, sempre é gostoso ter uma “galera” que fale a “nossa língua”. Só que tem gente que é exagerada.

Estava eu na faculdade, na companhia de dois colegas. De antemão aviso que os nomes foram trocados por descrição e porque ainda travo relações com essas pessoas. João e Maria, chamá-los assim me parece adequado. Voltando à história, os meus colegas são tão radicais em suas posições ideológicas que fazem o pessoal da esquerda da esquerda parecer de direita. Metidos com política estudantil e tudo mais. Conversávamos sobre assuntos que não versavam matéria política – o que para eles devia ser uma heresia, para mim era um alívio. De repente, de um dos vários corredores do prédio, surge um sujeito maltrapilho, trajando uma jaqueta ensebada, com o aspecto de quem está há dias sem banhar e sem parar de beber. Apresentou-se com a cerimônia que a circunstância poderia exigir. Começou então a falar peripécias de sua vida. O que narro aqui são fragmentos de uma fala entrecortada por grunhidos ininteligíveis e um sotaque baiano, um tanto incomum para quem se dizia sergipano. Eram histórias de noites ao relento; grandes porres e a depredação de uma fábrica que poluía o leito de um rio, fato que ele deu o nome de engajamento político. Nem preciso dizer que meus amigos estavam achando o máximo.

“O que vocês tão tomando aí, é cachaça?”, perguntou Sérgio ou pelo menos foi assim que disse que se chamava, deixando no ar o hálito de quem acabara de tomar a própria.

“Não. É café”, disse Maria.

“Eu quero”, disse-lhe enquanto tomava – sem consentimento – o copo de suas mãos e entornava de uma só vez todo o líquido.

Ele não parava de falar e eu – tirando pequenas contribuições insignificantes – mantinha-me com reservas, até o momento em que ele puxou de sua jaqueta surrada uns quatro livros.

“Apresento-lhes a jaqueta da expropriação”, disse-nos num misto de heroísmo e orgulho.

“Isso deve ser uma tática de guerrilha”, disse João. “Onde foi que você arrumou?”

“Expropriei de uma feira de livros”.

Diante daquela confissão não me contive.

“Aqui em São Luís isso tem outro nome: é roubo”, disse.

Sergio, dirigindo para mim um esgar de fúria, disse-me uns três impropérios, prometendo retirar-se, promessa que cumpriu em seguida – não sem antes tentar vender os frutos da jaqueta da expropriação.

Ficamos os três calados, olhando nosso visitante sergipano de sotaque baiano partir sabe-se lá para onde. Não demorou muito para o silêncio ser quebrado.

“Cara”, disse Maria, “o que era aquele sujeito? Pensei que fosse marxista.”

“Que nada”, emendou João, “tá na cara que era leninista.”

“Não. Acho que faz parte de alguma facção trotskista. Você não viu como ele falava em expropriação”, retorquiu Maria.

“É, mas não se pode negar que havia no discurso dele um quê de UJS e aqueles caras são mesmo uns porcos.”

“Absolutamente, camarada João (foi, ela falou desse jeito mesmo, que nem nos bons tempos da velha URSS), não há a menor chance disso.”

“Bom, pelo menos sei que não estava com nenhum livro do Plínio Salgado. Havia sim uma postura de caçador de integralista em seus olhos”, ponderou o camarada João.

“Devíamos tê-lo convidado para a Marcha Operária do pessoal da Facção Vermelha, que vai protestar na frente do diretório do PMDB”

Vale ressaltar que eu já estava meio de lado desde a conversa do Sérgio, então, diante de todas aquelas denominações e siglas, estava me sentindo um verdadeiro alienígena. Graças a Deus eu sabia o que era o PMDB, só por isso pude protestar sem me sentir tão desmoralizado assim.

“Para mim, o que ele é mesmo é um ladrão. Entenderam? L-A-D-R-Ã-O”, sentenciei. “Quanto a mim, sou católico, fui coroinha e torço pelo Flamengo.”

Parti irritado em direção a um ponto de ônibus, entendendo porque certos círculos são tão reservados. Pareceu para mim – pelo menos naquele momento – que para entender que diabos eles estavam falando, bastava que eu não entendesse coisa com coisa, o que para mim era tarefa muito complicada. No caminho do ponto de ônibus havia uma lanchonete, a televisão estava ligada, sintonizada no Programa do Ratinho. Resolvi sentar em um dos bancos disponíveis. Pedi um misto quente e um refrigerante e comecei a assistir à televisão. Como era bom conseguir entender alguma coisa.

7 comentários:

  1. Ei Thomaz...

    Sou uma alma sem tribo..r.s. complicado viver em um mundo de siglas e tantas significancias não é...

    Quando tudo o que queremos é nos entender e sermos compreendidos pelos demais...

    Os que se formam nossos redores, famílias, vizinhos, amigos e amores...

    Mas é muito difícil heim!!!

    Põe difícil nisto!!

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  2. Há tribos menos honrosas (do tipo que estão querendo nos enquadrar a todos) - a de "cidadãos consumidores, por exemplo. P.S: Havia um sujeito nos meus tempos de universidade de apelido Sertãozinho", com um sotaque semelhante e acho que não se formou nunca. Será que era Sérgio o seu nome? Finalmente consegui acessar o seu blog. Ainda saio do meu analfabetismo cibernético. Muito bom! Paz e bem.

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  3. Primeiro parabéns pela estilometria do texto. Se permitires depois posso até transformá-lo numa linguagem matemática de tão bem estruturado que ficou. Mas sim, vamos escrever sobre o conteúdo. Esta leitura me fez reforçar uma sensação que cada vez mais aluga meus pensamentos: As pessoas de uma maneira geral, família, academia, vizinhos, etc. falam coisas que não tem uma relação direta com aquilo que eles fazem e muito menos com o que eles sentem. As vezes você passa horas ouvindo um amigo teorizar sobre algo, vibra com aquilo tudo, concorda, chega até exemplificar para ilustrar,tornar mais vivo o seu discurso, e pouco tempos depois, ele age de forma totalmente contrária a tudo aquilo. A metamorfose tem até lugar nesse mundo. O problema é que para metamorfosearmos é preciso que sejamos diferentes.

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  4. Só quero dizer que estive aqui e é um prazer ler o seu texto.

    Beijo
    Carpe Diem!!

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  5. Tem brincadeira legal pra você soltar o verbo...

    http://pensamentosdasil.blogspot.com/2009/09/brincadeiras-serias.html


    Bjos

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  6. Primeiramente, devo um comentário neste nobre espaço há muito tempo, desculpe, Thomaz.

    A pequena estrofe no início do texto é sensacional, e o Zeca, é muito bom!

    Com um baita início de postagem, faz um término um tanto quanto suburbano.

    Daqui pra frente, estarei mais presente por aqui!

    Abraços...

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  7. Dando uma olhada aqui. Você escreve bem, rapaz. Já está linkado! Abraço!

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