
Dedicado a um casal amigo cuja amizade não foi esquecida pela distância.
Eles nunca foram um casal muito comum. Não digo que eram simplesmente estranhos porque é palavra que ofende. Além do quê, não faz juz ao amor existente por trás de toda aquela crosta de excentricidade. Conheceram-se no colégio. Ela tinha 15 anos, fazendo a oitava série pela segunda vez. Sabe como é, menina nova, na janela, o dia todo pensando pra muito longe dos muros da oitava série. Já ele era mais sisudo, aplicado: 12 anos e na sétima série. Não sonhava tanto, ainda era mais criança que rapaz namorador.
Namoraram sem começar a namorar, ali no recreio da escola, nos horários de saída ou entre um encontro de turmas mistas – que era a única maneira de se contemplar as garotas da oitava série que passavam azuis, lilases, todas coloridas e decotadas. Ela resolveu contar tudo pelo oitavo encontro: tenho um problema, disse, te namoro; seguro tua mão; conheço os teus pais; namoro namoradinho; só não faço uma coisa: beijo não, tenho nojo, baba como baba – não suporto. Ele ficou olhando – não sabia ainda que a manifestação do afeto se dava nos encontros físicos. Concentrou-se aritmético e proferiu: não tem problema. Não? Não. Mas também quero te falar uma coisa. Fala. Não tem esse aparelhinho no meu ouvido. O que tem ele? Sem ele sou surdinho. Ah, suspirou.
Ela não gostava de beijo. Ele era surdo. Quer dizer, a doença congênita tirara-lhe 80% da audição. Tinha tudo pra dar errado. Não deu. Ela era imperiosa, brigava com ele o tempo todo, até quando não tinha razão. Ele contornava. Debaixo da saraivada de palavras, cofiava as orelhas e ocultamente desligava os aparelhos. Era engraçado vê-la reclamando que nem heroína de filme mudo. Valeu-se do recurso por pelo menos cinco anos, foi o tempo em que a segurança do pequeno delito tirou-lhe a prevenção, até que um teve a infelicidade de confirmar o que não podia ser confirmado – é que, com os aparelhinhos desligados, não dava para entender o que ela falava. Não deu outra: obrigado a ligar os aparelhinhos no máximo, ouviu até o que não merecia.
No décimo ano de namoro veio a decisão: iriam casar. Ela continuava firme: sem beijos, apenas em ocasiões especiais e isso porque a convenção exigia. Beijos sempre contados, no máximo quinze. Ele, ainda paciente, ainda que não pudesse mais desligar os aparelhos. No dia do casamento ela estava no altar, toda de branco, bonita como ele se lembrava na oitava série. Aceito. Ele de terno preto, alinhado, mas ainda assim acima do peso. Aceito. Pode beijar a noiva. Mais um beijo pra contabilidade escassa.
Quase vinte anos depois do não primeiro beijo e continuam casados. Brigam menos. Quase se separaram uma vez. Ela partiu pra casa da mãe. Ele foi pra um hotel. Reataram. Ela é advogada. Ele é administrador de empresas com pós em gestão hoteleira. Moram num apartamento bonito; quatro quartos e uma decoração alegre. Têm três filhos; duas meninas e um menino: Paula, Isabel e Jorge, respectivamente. Ele quer mais um. Gosta de número par e além do quê, quer acabar com a opressão da progesterona. Ela não quer mais filhos. A fábrica fechou, ela diz.
Assim se manifestou neles mais um ato da humanidade: em seus três filhos. Sei não, com essa mania de não dar beijo, ainda não sei sequer como fizeram o primeiro.