sexta-feira, 7 de fevereiro de 2014

Olhos de boi

Ela não era muito jovem para estar casada, mas com certeza o era para ser viúva.  As duas alianças enfiadas no mesmo dedo da mão esquerda, como ordenam os ritos cristãos, não deixavam dúvida alguma: enviuvara.
                Podia até ser que não tivesse perdido o marido e que as alianças – que naquele caso assumiriam o papel de simples anéis – estivessem ali somente na condição de adorno, nada mais que uma questão de estilismo, coisa comum da juventude. Acreditei na primeira assertiva, aquela que a colocava no grupo das santas mulheres que vestem preto.  Além do mais – imaginei eu – exibia sinais de quem havia perdido a pessoa que lhe segredou histórias nos ouvidos; que certa vez perdeu o olhar em um ponto qualquer de seu corpo; que perdia seus cabelos entre os dedos; que observou a gota de suor que escorregava de sua nuca. Olhei mais atentamente para a mulher e achei que estava curvada, com o aspecto cansado, com a juventude morando nos olhos de quem a olhava à distância, pois observando-a  mais de perto, dela se roubava com facilidade uns dez anos ou mais. Senti que não era a velhice do tempo. Era a velhice da perda.
                Não sei se era bonita, talvez até fosse, não reparei. Notei sim que tinha um enorme par de olhos bovinos. Nada sei da natureza dos bois, mas isso não me impede de comparar os olhos da moça aos desses animais. Pode parecer estranho isso, mas quem já esteve em um matadouro sabe do que estou falando. Eles – os bois – ficam lá parados, pacientes, totalmente alheios ao que os aguarda, esperando o inevitável desenrolar dos acontecimentos. Assim como o olhar bovino, o olhar da moça mostrava conformidade com a natureza de alguma espécie de destino.
                A moça podia não ser viúva e eu podia estar enganado. Na verdade, pensando bem, ela poderia ser qualquer coisa, entretanto, conforme os detalhes que ainda há pouco expus, achei que fosse. Quando ela foi desaparecendo de minha vista, com certeza dando prosseguimento à sua própria vida, percebi que eu não teria certeza de nada. Ela podia ser uma irmã de sofrimento, podia não ser. Podia ser uma viúva de olhos bovinos. Podia ser qualquer coisa.



P.S.: Depois de tanto tempo, é bom estar de volta.

4 comentários:

  1. " As palavras que o vento leva". Ainda bem que o vento tem na sua natureza a potencialidade não só de levar, mas também de trazer coisas, neste caso, palavras. Que bom que voltastes a postar. Vento bom esse que trouxe você de volta por meio de um texto tão bem escrito. O bacana aqui é a genialidade com que capta cenas concretas tão triviais e as transformam em abstrações tão poéticas. Sei que isso é o ofício de quem escreve, mas você faz com muita propriedade. Parabéns!

    PS.:Espero que o vento traga logo logo outras tão belas palavras.

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  2. Obrigado. É muito bom voltar depois de tanto tempo de ausência. Muito tempo passou e muita coisa aconteceu. Dizem que o tempo ensina, mas não sei se aprendi algo, vou descobrir com o passar dos dias. O vento levou até você as minhas palavras e trouxe até a mim o seu lindo comentário. Obrigado.
    Beijos.

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