domingo, 16 de março de 2014

Amor


Ela sempre se queixou da falta de carinhos do marido, que imbuído de suas coisas praticas, que nos dizeres dele próprio eram sustentar a família e pagar as contas, apenas para citar como exemplo, nunca havia destinado a ela certos afagos.


Aí veio o câncer.

O caroço abaixo da axila chamou sua atenção, mas não parecia ser anúncio de qualquer coisa mais séria. É que às vezes a gente dá pouca importância para os pequenos sinais de enfermidade que o corpo expressa. Depois disso é que vieram os demais sintomas: a vermelhidão pelo corpo, a pele enrugada, a ferida que se abriu em sua mama direita.

Como deveria ser, a família acercou-se dela - até mesmo o marido que meio receoso, meio arrependido, ressentiu-se do amor não materializado.

Assim ela foi levando sua nova condição, fazendo exames de todos os tipos, tratamentos quimioterápicos, a extirpação da mama afetada - que nada significou diante de um câncer metastático -, crises que davam vontade de morrer logo. O marido ficava na cabeceira da cama, atento, afagando-lhe a testa suada. Ali foi redescoberto pela esposa, que enfim pode perceber que não era um caso de falta de amor, mas aquelas estranhas relações que se estabelecem depois de muitos anos de casados, estranhas relações que impedem de dizer eu amo você para a pessoa amada. 

Certo dia o encarou no fundo dos olhos e palavras não precisavam ser ditas. Ele a percebeu na cama e tudo que existia ao redor dela, o quarto, os corredores, os outros doentes que também sofriam, e até mesmo o hospital inteiro não passavam de um pano de fundo negro, alheio à história de vida deles.

Eu amo você, ele disse, sentindo o concreto de anos quebrar de sua boca muda de palavras.

Eu sei, ela respondeu. Eu sempre soube.

Ela morreu duas semanas depois. 

A cerimônia fúnebre não teve nada demais e essas ocasiões não precisam disso mesmo, afinal, as despedidas ocorrem antes das pessoas partirem. O marido, agora vestido de viuvez, não tinha a menos vontade de estar ali, apertando mãos, recebendo tapinhas nas costas. O que ele queria era pegar o carro e dirigir até a gasolina a gasolina acabar, poderia também entrar em um bar e beber até perder a consciência ou quem sabe até mesmo cavar um buraco bem fundo e enfiar-se nele para ser esquecido por todo mundo. Entretanto não podia fazer nada daquilo, deveria permanecer enlutado dentro de uma tradição que já nem se questiona mais.

A terra caiu sobre o caixão e tudo acabou. Simples assim.

Ainda levaria muitos anos para que ele também morresse. Nesse intervalo, é lógico, a vida seguiu seu curso, com seus filhos dando-lhe netos e o tempo dando-lhe rugas e reumatismos. Tornou-se um velho recluso, mas não antissocial, apenas gostava do silêncio e da lembrança. Ainda lembrava do quarto de hospital em que esteve com sua falecida esposa, sua boca dizendo que a amava e tudo parecia ter acontecido no dia anterior, mesmo que tempo negasse tudo.

Quando finalmente pode morrer em paz com sua consciência, não temeu a morte, porque imaginou que talvez ela nem existisse. Pensou na esposa e de como era curioso que o amor, um sentimento tão melhor descritos pelos poetas, fosse tão latente em um homem rude como ele. Eu amo você, disse enquanto segurava a mão de um de seus filhos à cabeceira de sua cama de hospital - por sinal o mesmo em que ela falecera, mas não era a mão de seu filho que buscava e sim a de alguém que partira muito tempo antes dele. Eu também amo você, pai e o filho sentia que o pai morreria ali, naquele instante.

O velho homem olhou de lado, na direção da janela e estava um dia lindo lá fora. Também estava um dia lindo dentro dele.

Fechou os olhos e morreu.

4 comentários:

  1. Se eu tivesse como manifestar através da escrita uma respiração ofegante, mais muito ofegante mesmo, não pensaria duas vezes, postaria mesmo no meu comentário, pois foi exatamente assim que o meu organismo reagiu ao terminar de ler este texto. O texto traz um paradoxo, ele relata algo comum e algo raro. Ele tem de comum a questão da distância que o casamento provoca e tem de raro o amor velado. Lindo. Sou apaixonada por pessoas que tem a capacidade de desenvolver sentimentos tão profundos. Se você foi capaz de pensá-los é porque você é uma delas.

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    1. Obrigado por sua leitura tão detalhada, fico grato mesmo. Às vezes a distância não é bem o que aparenta ser e o silêncio pode esconder muitas palavras que estão ali, esperando para serem ditas. Infelizmente o acaso às vezes nos tira a oportunidade de falar o que queremos e resta-nos o vazio. Infelizmente.
      Beijos.

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  2. Lindo, triste e emociona. Muito bem narrado por você, que aliás, escreve muito bem. Mas no decorrer do conto a gente vai pensando... e chega-se à conclusão que a vida não é nada, somos pendurados por um fio, tanto em saúde como administrar sentimentos que muitas vezes não sabemos. Pena que só ficamos sabendo de sentimentos verdadeiros numa hora dessas...Um pouco tarde. Muitas vezes as pessoas sentem e não sabem expressar.
    Grande abraço!

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    1. Obrigado, Taís, fico feliz por você ter aparecido por aqui. A vida é assim mesmo, cheia de despedidas inconvenientes. Falar o que queremos é a única maneira de nos adiantarmos aos eventos.
      Abraços!

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