sexta-feira, 7 de março de 2014

O bicho




O bicho


Vi ontem um bicho
Na imundice do pátio
Catando comida entre os detritos.

Quando achava alguma coisa,
Não examinava nem cheirava:
Engolia com voracidade.

O bicho não era um cão,
Não era um gato,
Não era um rato.

O bicho, meu Deus, era um homem.




O poema "O bicho", de Manuel Bandeira é uma das pérolas mais finas e caras da recente literatura brasileira. Fina porque é uma construção literária magnífica, que só podia ser produzida por um grande artista como ele. Cara porque usando o lirismo revela as grandes misérias deste país que chamam de Brasil.

Esse poema mexeu comigo na juventude e estremeci ao constatar que a criatura que vasculhava os detritos, que sequer cheirava o que comia era um homem. Mas na época eu nada podia fazer, não era mais que um garoto e aquilo estava além de minhas condições. O tempo passou, amadureci e virei um homem. As imagens que chocaram tanto a minha imaginação sumiram de minha cabeça.

Um dia desses, andando pelas ruas de minha São Luís, vi outra vez o bicho, mas ele não estava nas palavras de um poema, ele estava na minha frente, diante de meus olhos. Vi um homem curvado que nem bicho faminto, vasculhando o lixo furiosamente e em um bandeco usado e sujo, depositava tudo o que achava e fazia para si uma refeição bizarra. O que causaria repulsa na maioria das pessoas era o que atenuaria mais um de seus dias de miséria. De repente me senti o garoto que havia lido o poema anos atrás e mais uma vez não podia fazer nada, porque não era a comida que lhe faltava, era a própria dignidade. Nessas horas existem aqueles que dizem que Deus não existe e é verdade, para eles não existe mesmo, mas aí Deus é apenas um conceito e nem é o mais caro dessa história. O conceito que nos abala e nos aflige é o nosso conceito de humanidade. O que é a humanidade em um momento como este? Nada. Porque o homem que vi não era um humano, sequer era um bicho. Os bichos estão integrados à natureza bruta e se os vemos buscando alimento em meio ao lixo é porque estão deslocados de seus habitat. Entretanto, o homem que vi não estava deslocado, estava entre outros homens e ainda assim comia lixo, mas a sua fome não era de comida, a sua fome era de ser homem, era fome de deixar de ser bicho. É nesse momento que a humanidade não é um conceito, uma palavra para ser dita por bocas cheias de dentes. A humanidade não existe.


São Luís, 20 de fevereiro de 2014.

4 comentários:

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  2. Como dizia o saudoso Renato Russo, "a humanidade é desumana". A discussão sobre Deus realmente se trava num diálogo complexo, pois este ente se existe é constituído por algo muito diferente de nós, a lógica é outra. Quanto ao homem também não temos ferramenta para afirmar o que ele é, ele e qualquer coisa formada pela mesma matéria.Entretanto, podemos afirmar que não podemos deixar de dizer que ele não seja DIGNIDADE. O "homem" sem dignidade apenas é um animal com formas humanas. A diferença entre o animal e o homem, é que o primeiro não teve o azar de nascer numa sociedade e condicionar a sua a sua humanidade a terceiros.
    Mais uma vez ganhei meu tempo lendo você e mais uma vez saio deste cantinho refletindo sobre o tema.
    Parabéns e já aguardo uma nova postagem.

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  3. Às vezes acho inútil falar sobre a humanidade. Tudo bem que olhamos para o outro de vez em quando e até mesmo nos importamos com o que lhe acontece, entretanto, para cada bondade feita, mil maldades são perpetuadas pelo mundo. Não sou otimista e, parafraseando o Renato Russo, os bons morrem jovens mesmo - infelizmente a coisa é desse jeito mesmo. Mas é sempre bom compartilhar minhas impressões com você.
    Beijos.

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  4. Seu texto está bárbaro, numa escrita que flui. E lhe digo... como somos loucos! Humanos...Gosto de ler você, o texto acima,' A volta do pior' está excelente.

    Grande abraço!

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