domingo, 22 de novembro de 2009

(I)números que não se contam mais


Ela repuxa o vestido como se este fosse uma manta. Ao fazê-lo resmunga. O pedaço de pano sujo que lhe cobre o corpo é incapaz de cumprir tão ingrata e improvisada tarefa. A boca que se murcha, não se sabe se em sonho ou pesadelo, gagueja pragas perdidas na noite. Se se encolhe e não lhe basta o vestido para cobrir a dignidade é porque tem frio e se lhe faltam forças para esfregar os braços como dissesse ao frio, estou aqui e basto para mim mesma, é porque é velha e já não lhe valem sequer as idéias da distante juventude. E se ainda assim não lhe bastaram as tragédias de sua própria vida, as ruas, que para ela são o correspondente a um lar, lhe mostraram umas tantas outras.

Da janela de um ônibus qualquer se vê claramente, a velha é uma criatura entre tantas outras mil criaturas; tantas outras mil agonias de um sábado à noite. Dia seguinte: almoços de domingo, filmes no cinema, passeio no parque, volta para casa. Que parte da vida comum, da coisa comum, de um domingo comum lhe foi negada?

Aqueles que são os grandes homens do mundo. Aqueles que são grandes e que ainda assim não enxergam a pequenez dos que já são pequenos, se pudessem vir e olhar o sofrimento dos que do dia só comem a poeira do mundo, saberiam como ele é maior que o ego.

Enquanto as dores do mundo rasgam os que estão com o rosto colado às janelas do ônibus qualquer, a velha se revira no mundo (acordando?), as entranhas se mexendo em espasmo. Olha para alguém (do ônibus?). Parece que olha, mas não olha, o juízo lhe eclipsou os olhos. O ônibus corre macio, entrando mais e mais dentro da garganta da noite. Uma voz diz, ide e anunciai, outra responde, o que olhos não vêem (ou fingem não ver) o coração não sente. O ônibus se afasta mais. A velha vai sumindo quadro a quadro, cinematográfica. Volta a dormir.

9 comentários:

  1. Triste ne, mais triste é saber que quem pode fazer algo mesmo sendo pouco, na verdade não faz nada e finge estar tudo bem. Nessas horas eu penso: será que não tá hora de nós mesmo colocarmos a 'mão na massa'?

    Beeijos!

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  2. Puxa Thomaz...

    Vamos combinar...

    Como é difícil viver... Desde a nossa inocência até a mais alta sabedoria (experiência - velhice) de vida.. estamos presos ao "Será"...

    E mais uma vez eu pergunto...

    "Será" que tudo isto um dia terá fim??
    ...

    Estou buscando muitas respostas....

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  3. Belo texto. Gosto da forma que você escreve... Assim como gostei do assunto e da foto, hehe.

    Beijos

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  4. Enfrentar a miséria quando se tem físico e ainda somos contabilizados, já é árduo. Quando somos números que não contam mais, aí a coisa fica cruel. Belo texto: poético, intenso e talhante.
    Beijos!

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  5. «Tudo em nós envelhece, escasseia, perde vigor com o tempo: a energia do corpo, a entrega da alma, a força da memória, a velocidade do pensamento. Menos uma coisa: a imaginação, o sonho de olhos abertos. Essa está cada vez mais fresca, mais desperta, mais ambiciosa, em contra-corrente ao corpo e à alma. E quando a imaginação cresce e fica maior do que a alma, já não cabe nela, o velho entra em delírio, deprime-se, escorre para fora do corpo – e deixa-se morrer.
    Morre porque já não cabe na vida, fica-lhe um bocado de fora». José Saramago...

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  6. Mas em meio a estupidez da sociedade a partir do momento que não somos mais ativos ou pela idade, ou pela incapacidade deixamos de ser...e na verdade sempre acrescentamos ao nosso ser exatamente pela experiência de vida......belo texto, tocaste num ponto bastante frágil: A DESVALORIZAÇÃO DOS NOSSO VELHINHOS...abraços

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  7. Mais um belo texto que nos apresenta uma sensibilidade de poeta, capaz de sentir o mundo através de um olhar raro!

    P.S: A honra é toda minha. Identifico-me muito com seu trabalho e, se algo em Pseudofilosofia o agradou, sinto-me feliz. Bom, um abraço do admirador

    Murilo.

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  8. O abandono é o retrato da indiferença revelado ao relento. Primorosa a sua reflexão crônica. Um abraço amigo. Paz e bem.

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