domingo, 23 de janeiro de 2011

A mulher, os cães, a enchente


Tenho pavor da morte, como quase todo mundo que conheço. Não interessa como ela venha, se for suave e rápida ou lenta e dolorosa, simplesmente não estou preparado para morrer – sempre vou achar que esqueci de fazer algo. Confesso que acho o medo da morte irracional, ela é inevitável, mas ninguém acredita nela nem que um dia ela virá.

O dramático salvamento da mulher presa em sua laje me deu essa exata dimensão de descrença. Vê-la ali, encurralada pela força das águas, buscando uma ilusória proteção ao lado de seus cães de estimação teve um quê de surreal. Seu olhar fitava o vazio, enquanto as águas derrubavam parede por parede de seu frágil abrigo. Era como se ela não pudesse acreditar no que seus olhos viam (assim como eu também, meu Deus, não acreditava); como se a morte, materializada tão agudamente na forma de enxurrada, não tivesse o direito de estar ali reclamando aquelas vidas tão comuns: o quê, uma mulher idosa e uns três ou quatro cães, era isso que a morte reclamava tão insistentemente. Quando a corda caiu em suas mãos e vozes desesperadas gritavam para que ela largasse o animal, a realidade caiu então plausível em sua cabeça, morreria se permanecesse ali. Amarrou-se e num ultimo arroubo de esperança, tentou carregar o animal que lhe cabia nos braços – a motivação de sua escolha era irrelevante, não interessa se era por causa do tamanho ou se era o bicho de sua predileção, ele apenas estava ali, em suas mãos e mesmo que não raciocinasse, como fazem os homens, seu instinto apontava para a mesma coisa que o raciocínio pronto e acabado da mulher: sobreviver.

O resto da imagem foi exibido nos noticiários à exaustão: a mulher, sumindo nas águas sujas com o cão e emergindo destas mesmas águas sem ele, que desaparecido nas ondas, apenas deixou de existir. Braços, pernas e vozes exaltadas a puxaram para um abrigo mais alto, oferecendo de maneira tão corajosa aquilo que ela buscava tão desesperadamente ao enfrentar a enxurrada, a vida. A morte então havia se consumado em mais aquele pedaço de Rio de Janeiro, pelo menos em parte, já que não conseguiu tragar a mulher. A chuva ainda caia, quando a câmera amadora ainda buscou o que restava do abrigo onde estavam a mulher e os cães, e só podia ser uma coisa, coisa alguma, apenas água. Quanto vale a vida nessas horas é um mistério do tamanho da morte: vale um grito no desespero; uma corda esticada no vazio.

3 comentários:

  1. Aquela cena foi para mim o momento que a natureza nos mostra que sua inexorabilidade não está nem aí para tecnologias, dinheiro e poder. Sequer está fazendo alguma vingança. É o equilíbrio interior dela própria, é a realização de sua inexorabilidade. Nós humanos é que teimamos em suster esta inexorabilidade, porem sem nenhuma sabedoria e sim com prepotência e crença numa possibilidade de superá-la. Esplêndida sua narrativa, Thomaz! Meu abraço. Paz e bem.

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  2. Thomaz acho que de tudo que li sobre esse vídeo o seu é dos melhores, a vida e a morte andam juntas e a qualquer momento podem se desprender.
    abs
    JUssara

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  3. Não consegui ainda ver essa cena.
    A Busca pela Vida sempre me emociona.
    Como este teu relato.

    Beijo

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