domingo, 28 de março de 2010

O embargo do banheiro público


Aconteceu mais ou menos assim: a SEMTHURB (Secretaria Municipal de Terras, Habitação e Urbanismo) apareceu no meio da hora do almoço para embargar a obra do banheiro público da pracinha. O pedreiro encarregado de capitanear a construção se recuperava de uma avassaladora buchada feita por sua mulher, quando levou um susto, que o fez levantar-se da sombra da tamarineira, onde descansava, ao observar o fiscal da prefeitura colar nas paredes de tijolos aparentes do banheiro público em construção um adesivo que continha em letras garrafais a palavra INTERDITADO. Podia-se observar, banheiro adentro, que os trabalhos já estavam bem adiantados, todas as paredes erguidas, o piso parcialmente assentado, trono e pia em seus devidos lugares.

O pedreiro exigiu dos fiscais imediatas explicações sobre o motivo do embargo, afinal a obra era coisa de importância; de utilidade incontestável aos beneficiados pela obra, diga-se de passagem, o dono da banca de jornal, os flanelinhas da praça, o pessoal do sindicato da Construção Civil – aliás, autores intelectuais e financiadores do tão polêmico banheiro –, os ambulantes do local e os eventuais desesperados em conflito com as próprias entranhas. Os fiscais da SEMTHURB, investidos de todos os poderes que a função de servidores do poder público municipal lhes poderia oferecer, preferiram ser reticentes com o problema: “Tem autorização da SENTHURB, tem? Não tem. Então está embargada a obra”.

Ora, a pracinha, o pode ser atestado diante do uso do grau diminutivo pracinha, é lugar pequeno e os tumultos podem ser avistados ao longe, é justamente por isso que em pouco tempo, toda uma multidão próxima ao local se acercava muito rápido dos detalhes do litígio. Apareceram o jornaleiro, os flanelinhas, os ambulantes, o pessoal do sindicato da Construção Civil e até mesmo um policial que não estava no exercício de suas funções, pois já havia terminado seu turno, mas de qualquer jeito resolveu ficar andando por ali, perto dos acontecimentos, pois é sempre necessário que se mantenha a ordem. Avolumada a discussão e com o reforço policial recém adquirido, os fiscais mantiveram-se irredutíveis às reclamações, tinham ao seu lado o Estado e todos sabem: o Estado nunca está errado: a obra permaneceria embargada. Quando chegou também a imprensa, já não se sabia mais quem tinha razão. Diante da negativa do Estado em satisfazer as necessidades mais básicas, neste caso muito básicas, já que são fisiológicas, o povo, cansado de ter cerceados seus direitos, só podia fazer aquilo que aprendeu a fazer em séculos e mais séculos de experiências: reclamou.

Enquanto não se podia saber se o banheiro ia ou não ser construído, uma mãe e seu filho passavam próximos à obra. O menino se contraiu e reclamou para a mãe: mãe, quero fazer xixi. Ora, menino, faz bem ali, atrás da obra. Mas tá cheio de gente, mãe! Psit! Ninguém vai reparar. Inadvertidamente, ignorando a aglomeração, o menino esvaziou sua bexiga atrás da obra – imensamente satisfeito ao fazê-lo –, sem saber que sua pequena ação contrariava a vontade do Poder Público, o que o tornou ao mesmo tempo contraventor e herói involuntário da pequena multidão. A necessidade é assim mesmo, dentro dos rígidos limites de conduta que os homens impõem a si mesmos, faz aquilo que aprendeu em séculos e mais séculos de experiências: ser necessidade.

9 comentários:

  1. Adoro sua forma de contextualizar mundo! Sempre um cronista de mundo aqui! abs

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  2. Thomaz,

    A julgar pela forma como você escreve, me sinto sempre feliz com suas críticas aos meus textos. É de uma firmeza a sua maneira de contar histórias, construir personagens. Ao fim de um domingo, uma crônica perfeita.

    Só posso mesmo agradecer por suas leituras. Me farei mais presente por aqui.

    Um abraço.

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  3. Thomaz, acho que nem precisa mas isso é um conto da mais maravilhosa maravilha.rsrs. E uma fina ironia, um sarcasmo social bem configurados nas figuras do estado , do povo e da organização social trôpega e claudicante feito o nosso contrato social. Um espetáculo, meu amigo! Eu fiquei encantado deveras! Abração. Paz e bem.

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  4. Thomaz, voltei para retribuir os votos de páscoa desejar-lhe, bem como os seus, também alegrias e reflexões nesta data tão importante. Obrigado e um grande abraço amigo. Paz e bem.

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  5. Thomaz, muito divertida sua crônica. Lembrou aquela velha história de Andresen, "A nova roupa do rei."


    A mijadinha do moleque foi uma espécie de "O Rei está nu!!"

    Hehehe, grande. Parabéns.

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  6. Tomaz vc almentou tanta coisa nessa história do banheiro público, pois moro em frente esta Praça, própriamente em frente da banquinha de revista citada em seu comentário... Na verdade quando a obra foi embargada só estava de pé as paredes, nada mais e esse pedreiro comandante da obra teve uma idéia genial pois era isso que o Estado deveria fazer, zelar pela higiêne das pessoas, do ambiente...em contra partida a clasdse dominante só se preocupa em luxar, emquanto muitos estão a fazer suas necessidades a beira de uma calçada ou banco de uma praça, talvez se não houvesse tanta perda de tempo com coisas pequenas, nós já teriamos há muito tempo deixado de ser Um país "zinho" de terceiro mundo, vamos fazer cada um sua parte, vamos cobrar daqueles que prometeram e vamos também permitir que pessoas como o "pedreiro" construa o que for preciso pra melhorar. Sem mais, era só isso! Abraços.

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  7. Obrigado a todos. Quanto à pessoa que não quis se identificar, fico muito grato por sua contribuição, mas gostaria de explicar alguns detalhes. Evidentemente que a notícia é real, como você fez questão de enfatizar em seus comentários, com relação a alguns detalhes como as sensações do pedreiro, a presença do policial, os avanços da construção e a mãe acompanhada do filho no final da história, são elementos ficcionais da crônica, portanto colocados ali somente para dar força ao evento e sem nenhuma ligação com o real - o que aliás é, às vezes, um recurso usado em muitas histórias "reais". Acompanhei o acontecido pelos meios de comunicação locais e me indiguinei tanto quanto você. Em pensar que se você caminhar um pouquinho para além de sua casa e você verá como a, há anos desativada, Biblioteca Pública Benedito Leite tem sido feita descaradamente de mictório público, sem nenhum tipo de intervenção da mesma SEMTHURB. É uma pena que quando a voz do bom senso surge na boa intenção de um pedreiro, o Estado faz questão de silenciá-la.
    Um grande abraço a você e todos aí de sua comunidade.

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