
Aconteceu mais ou menos assim: a SEMTHURB (Secretaria Municipal de Terras, Habitação e Urbanismo) apareceu no meio da hora do almoço para embargar a obra do banheiro público da pracinha. O pedreiro encarregado de capitanear a construção se recuperava de uma avassaladora buchada feita por sua mulher, quando levou um susto, que o fez levantar-se da sombra da tamarineira, onde descansava, ao observar o fiscal da prefeitura colar nas paredes de tijolos aparentes do banheiro público em construção um adesivo que continha em letras garrafais a palavra INTERDITADO. Podia-se observar, banheiro adentro, que os trabalhos já estavam bem adiantados, todas as paredes erguidas, o piso parcialmente assentado, trono e pia em seus devidos lugares.
O pedreiro exigiu dos fiscais imediatas explicações sobre o motivo do embargo, afinal a obra era coisa de importância; de utilidade incontestável aos beneficiados pela obra, diga-se de passagem, o dono da banca de jornal, os flanelinhas da praça, o pessoal do sindicato da Construção Civil – aliás, autores intelectuais e financiadores do tão polêmico banheiro –, os ambulantes do local e os eventuais desesperados em conflito com as próprias entranhas. Os fiscais da SEMTHURB, investidos de todos os poderes que a função de servidores do poder público municipal lhes poderia oferecer, preferiram ser reticentes com o problema: “Tem autorização da SENTHURB, tem? Não tem. Então está embargada a obra”.
Ora, a pracinha, o pode ser atestado diante do uso do grau diminutivo pracinha, é lugar pequeno e os tumultos podem ser avistados ao longe, é justamente por isso que em pouco tempo, toda uma multidão próxima ao local se acercava muito rápido dos detalhes do litígio. Apareceram o jornaleiro, os flanelinhas, os ambulantes, o pessoal do sindicato da Construção Civil e até mesmo um policial que não estava no exercício de suas funções, pois já havia terminado seu turno, mas de qualquer jeito resolveu ficar andando por ali, perto dos acontecimentos, pois é sempre necessário que se mantenha a ordem. Avolumada a discussão e com o reforço policial recém adquirido, os fiscais mantiveram-se irredutíveis às reclamações, tinham ao seu lado o Estado e todos sabem: o Estado nunca está errado: a obra permaneceria embargada. Quando chegou também a imprensa, já não se sabia mais quem tinha razão. Diante da negativa do Estado em satisfazer as necessidades mais básicas, neste caso muito básicas, já que são fisiológicas, o povo, cansado de ter cerceados seus direitos, só podia fazer aquilo que aprendeu a fazer em séculos e mais séculos de experiências: reclamou.
Enquanto não se podia saber se o banheiro ia ou não ser construído, uma mãe e seu filho passavam próximos à obra. O menino se contraiu e reclamou para a mãe: mãe, quero fazer xixi. Ora, menino, faz bem ali, atrás da obra. Mas tá cheio de gente, mãe! Psit! Ninguém vai reparar. Inadvertidamente, ignorando a aglomeração, o menino esvaziou sua bexiga atrás da obra – imensamente satisfeito ao fazê-lo –, sem saber que sua pequena ação contrariava a vontade do Poder Público, o que o tornou ao mesmo tempo contraventor e herói involuntário da pequena multidão. A necessidade é assim mesmo, dentro dos rígidos limites de conduta que os homens impõem a si mesmos, faz aquilo que aprendeu em séculos e mais séculos de experiências: ser necessidade.